Estudo mostra que o planeta já mudou de era e cientistas questionam utilidade dessa informação

Estudo mostra que o planeta já mudou de era e cientistas questionam utilidade dessa informação
A Terra começou a perder para a humanidade com a expansão da agricultura e com o desmatamento que foi sendo necessário à medida que poderosas empreitadas juntaram a palavra “negócio” ao ato de arar, cultivar e colher alimentos. Para quem acompanha as notícias que se referem às mudanças climáticas, isso não chega a ser novidade. O que é novo é um estudo científico publicado pela Revista Science mostrando indícios cada vez mais claros de que o planeta entrou numa nova era geológica, o antropoceno (derivado de atividades humanas) por volta de meados do século passado. Esse casamento pouco auspicioso (menos árvores com mais territórios agricultáveis) foi um dos motivos da mudança de era. O período chamado “Columbian Exchange”, que recebeu esse nome em 1972 e caracteriza a transferência generalizada de animais, plantas, cultura e populações nos séculos XV e XVI entre os hemisférios (usando, portanto, o transporte), também contribuiu. O Holoceno, ainda considerado até então, começara há 12 mil anos.
Segundo reportagem publicada ontem (7) no jornal britânico “The Guardian”, o novo estudo publicado pelos cientistas comprova (mais uma vez) que a humanidade ajudou nessa mudança de era. Com desmatamento e depois a descoberta do combustível fóssil, o uso do cimento e do plástico, o homem foi se impondo e provocando desgastes na natureza, muitos dos quais hoje são irreversíveis.
“Anualmente são produzidos cerca de 300 milhões de plástico (grande parte disso vai parar nos oceanos) e o concreto tornou-se tão dominante nas construções que mais da metade de todo o concreto produzido no mundo foi nos últimos vinte anos”, diz o texto da reportagem.
Por outro lado, a natureza intacta vai sendo empurrada cada vez mais para pequenos territórios. Hoje já há apenas 25% de terra selvagem no mundo, e há três séculos havia mais de 50%, diz o texto. Resultado imediato disso é a morte de várias espécies, a perda da biodiversidade. A esse respeito, recentemente li uma entrevista com o músico americano Bernie Krause, especialista em gravar sons de animais em florestas, pântanos e desertos em várias partes do mundo, que me deixou bastante impressionada. Ele demonstra, com o dia a dia de seu trabalho, o que se tenta comprovar pela teoria (leia aqui). Segundo Krause, metade dos habitats que já percorreu hoje não fornecem mais material para seus arquivos porque estão em silêncio.
“O que eu vejo é que estamos nos aproximando não só de uma primavera silenciosa (alusão ao livro “Primavera silenciosa”, de Rachel Carson), mas inverno, outono e verão silenciosos”, declarou ele.
O sentido funcional de declarar que já estamos vivendo uma nova era, segundo Colin Waters, principal geólogo da British Geological Survey e um dos autores do estudo, é oficializar isso junto à Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS na sigla em inglês). E o principal propósito de tornar oficial a mudança é deixar ainda mais contundente, para a humanidade, a escala dos impactos que ela vem provocando na natureza.
“As pessoas estão, sim, cada vez mais informadas sobre as discussões a respeito das mudanças climáticas. Este trabalho vem apenas acrescentar informações, dizer que não apenas a atmosfera como se conhece hoje, mas também os oceanos, as geleiras, podem não estar mais aqui daqui a dez mil anos. É esta a escala das mudanças que estão ocorrendo”, disse Waters.
Mas outros cientistas contestam a utilidade desse anúncio de mudança de era para o dia a dia dos cidadãos comuns, até mesmo para a adoção de mais medidas que possam tentar estancar o desastre. Alguns dos ouvidos pela reportagem acham que é inútil tornar pública e oficial a constatação. “É como ter uma chave inglesa nas mãos à disposição e não ter como utilizá-la”, disse Phil Gibbard, um dos geólogos.
Se não servir para provocar as mudanças que se quer no sistema socioeconômico, de fato, anunciar uma mudança de era será quase mais do mesmo. Afinal, acabamos de ouvir o bater do martelo de um mega acordo climático em Paris, na COP-21, que pelo menos teoricamente se propõe a atualizar e rever alguns procedimentos que podem estar contribuindo para as mudanças do clima, a acidificação dos oceanos, o derretimento de geleiras.
Acabo concluindo que têm razão, então, os cientistas que discordam da necessidade de se fazer tantos estudos para provocar ainda maiores reações. Mais do que isso… é plenamente cabível a pergunta que me fizeram outro dia em roda de amigos: se o homem não tivesse causado tantos impactos, ele teria conseguido sobreviver no planeta até hoje?
O livro “História das agriculturas do mundo – Do neolítico à crise contemporânea”, de Marcel Mazoyer e Laurence Roudart (Ed. Unesp), começa com uma provocação às avessas dessa pergunta. Se o homem abandonasse hoje todos os ecossistemas cultivados do planeta, o que aconteceria?
“Estes retornariam rapidamente a um estado de natureza próximo daquele no qual ele se encontrava há dez mil anos. As plantas cultivadas e os animais domésticos seriam encobertos por uma vegetação e por uma fauna selvagem infinitamente mais poderosas que hoje. Os nove décimos da população humana pereceriam, pois, neste Jardim do Éden, a simples predação (caça, pesca e colheira) certamente não permitiria alimentar mais de meio milhão de homens”, diz o texto, respondendo assim à questão que me foi feita.
O problema que deveria ser proposto, afirmam os autores, é se os projetos e as políticas de desenvolvimento agrícola responderam às necessidades das populações. O que nos leva a uma reflexão que também nada tem de inédita, mas que não custa repetir à exaustão: o desenvolvimento que se conseguiu ao provocarmos tantos males ao ecossistema garantiu, sim, a vida do homem no planeta. Mas, para alguns, garantiu uma boa vida. Já para outros, como por exemplo para os 800 milhões (quase quatro Brasis) que ainda passam fome no mundo hoje, permite apenas uma sobrevivência pálida, esquelética, sem esperanças.
Nesse sentido, ponto para os projetos agrícolas que têm os meios para subsistir e que conseguem progredir com criatividade, seguindo seus próprios caminhos, sem colar nos grandes padrões da chamada agricultura moderna. Há inúmeros desses projetos. “Mas são essas iniciativas, justamente, as marginalizadas e eliminadas pela concorrência das mais poderosas”, escrevem os autores.
Aqui também, nenhuma novidade. Mas é bom refletir a respeito, sempre. E ir provocando mudanças que possam ser mínimas, sutis. Quem sabe o anúncio de uma mudança de era pode provocar essas alterações de comportamento, não em todos, mas em alguns. Não só na produção, como no consumo. Aí, já está valendo.
Fonte: G 1
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