ESTILO DE VIDA. Comemos num açougue sem carne, a nova moda vegana

ESTILO DE VIDA.
Comemos num açougue sem carne, a nova moda vegana

No paulistano No Bones a salsicha é de tomate seco e a costela, de cogumelos
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O repórter e a coxinha: os açougues veganos são a última novidade num mercado que deve faturar 6 bilhões de dólares em 2022 (Leandro Fonseca/EXAME Hoje)

Existe um açougue de São Paulo que não foi afetado de maneira alguma pela recente crise da carne, deflagrada diante da operação Carne Fraca da Polícia Federal. É o No Bones, o primeiro e único açougue vegano de São Paulo, aberto em dezembro e desde então ponto de encontro de moderninhos, curiosos e – bem, de veganos mesmo. Além do No Bones, outros quatro estabelecimentos oferecem serviço semelhante no Brasil, no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Curitiba.

Vegetariano há quatro anos e uma espécie de caçador de bons restaurantes com pratos veganos, fui incumbido pela chefia onívora de experimentar os produtos do No Bones ao longo de uma semana. Do hambúrguer de feijão azuki a nuggets de milho, passando pelo bacon de coco e pela famosa costelinha ao molho barbecue, provei quase tudo que havia no açougue (a picanha vegana, feita com amido de arroz vermelho e gordura de queijo vegano, infelizmente, ainda não tive a oportunidade de provar).

A ideia era descobrir se por trás do oba-oba há sabor nos produtos vendidos. É isso, no fim das contas, que vai indicar se o No Bones e os açougues veganos são uma modinha com vida curta ou se estão abrindo caminho para um novo nicho de negócios. O universo dos produtos veganos, evidentemente, vai crescer cada vez mais. O mundinho dos açougues de arroz vermelho, bem, esse ainda tenho minhas dúvidas.

O carro-chefe da casa é um prato já cultuado entre os veganos hard core Brasil afora: a coxinha de jaca, feita com a fruta ainda verde, que permite que seja desfiada e temperada como um recheio salgado. Em casa, onde moro com outros dois vegetarianos, a coxinha foi bem recebida, mas sem nenhuma grande surpresa. Pessoalmente, não acho que é a melhor coxinha de jaca que já provei (tenho uma espécie de queda pela iguaria). Há lugares, como o Mate Por Favor, na rua Augusta, em São Paulo, que fazem uma coxinha de jaca melhor, ou mesmo o VegVeg, em Curitiba, o primeiro empório vegano do Brasil, que reúne centenas de pessoas todos os anos no Festival da Coxinha Vegan.

O No Bones, fundado em dezembro do ano passado, teve um investimento inicial de 60.000 reais, para preparação do local e também das “carnes”, receitas da chef Marcella Izzo, uma das sócias, ao lado do noivo Bruno Barbosa. Ela começou testando as receitas em casa, há cerca de um ano, quando migrou para o veganismo, versão estrita do vegetarianismo, que, além de abandonar as carnes, também deixa de lado o consumo de derivados de animais, como leite, ovos, alguns corantes, mel. Incentivada pelos que provaram os pratos, Marcella decidiu vender os pratos aos veganos de São Paulo.

Marcella afirma que o dinheiro investido já foi recuperado, com um faturamento de quase 30.000 reais por mês. Os sócios puderam até reinvestir outros 15.000 reais em uma cozinha maior e na criação de uma lanchonete, que funciona ao lado do açougue, vendendo sorvetes e hambúrgueres — tudo 100% livre de produtos de origem animal. É comum que o No Bones realize também eventos em feriados e finais de semana, como durante o Carnaval ou durante o dia de São Patrício, para vender coxinhas e cervejas artesanais, outra especialidade do açougue, que comercializa bebidas de pequenos produtores.

Mas por que um açougue, afinal? Açougues veganos são bastante comuns em países como Alemanha e Holanda, lugares onde o veganismo é muito difundido, e de onde a empresária tirou a inspiração para o No Bones. Berlim é considerada a capital vegana da Europa, onde há 60 restaurantes exclusivamente veganos, além de centenas com opções para quem não come carne e mais de 80.000 habitantes veganos — o número é quase 5% da população da cidade. “Em uma viagem a Amsterdã, vi o modelo de açougue vegano e gostei da novidade. Quando voltei, criamos o No Bones. Já havia um em Curitiba e percebemos que faltava essa opção para os vegetarianos e veganos em São Paulo”, afirma Marcella.

Uma pesquisa do Google Trends, braço de análises do Google, mostra que as buscas pelo termo “vegano” cresceram 1.000% nos últimos quatro anos no Brasil. No mundo, é um mercado que deve faturar 6 bilhões de dólares em 2022, segundo dados da pesquisadora MarketsandMarkets. A Sociedade Vegetariana Brasileira estima cerca de 6 milhões de veganos no Brasil, numa conta um tanto superestimada. Em 2012, uma pesquisa Ibope apontou que 8% dos brasileiros eram vegetarianos, ou seja, não comiam carne, mas comiam outros derivados de animais. Esse mercado vem se ampliando com a oferta de produtos até de vestuário, além da comida.

O bom, o ruim e o outro

Confesso, de antemão, que sou reticente com os produtos vegetarianos que têm semelhança física à carne. Qual a lógica de se inspirar justamente em produtos que você não põe na mesa? Além do mais, minhas experiências anteriores com produtos que emulavam carne nunca foram muito boas. Sempre achei as salsichas de soja industrializadas terríveis e com a textura semelhante à de papel machê. A carne de soja, conhecida como proteína texturizada de soja (PTS), bem como o glúten, foram produtos que recorri no início da vida vegetariana, mas que depois percebi que eram simplesmente ruins.

Com o tempo, abandonei esses “substitutos” e migrei para as verduras, legumes e grãos, que aprendi serem a melhor parte da dieta vegetariana.
Embora o No Bones fabrique alimentos que, visualmente se assemelham à carne, o lugar busca quebrar o paradigma da soja e do glúten. Poucos produtos são feitos com glúten e a soja é bastante comedida. A salsicha, por exemplo, é feita de tomate seco — tem um sabor e uma textura bem mais agradáveis do que as industrializadas. É um ótimo substituto para aqueles que gostam de cachorro quente e tinham que apelar para as cenouras (!), na falta de um produto melhor.

Por outro lado, o kibe de forno, feito de soja, grão de bico, trigo para kibe e hortelã deixou a desejar. Não tinha gosto de kibe, nem o tempero marcante comum em comidas veganas. Para quem nunca comeu em restaurantes ou lanchonetes veganas, é preciso dizer: o tempero forte e destacado é uma atração desse tipo de culinária. Pode ser pela ausência da carne, ou pela necessidade de destacar alimentos que, na alimentação onívora, não têm o mesmo papel, mas o tempero é uma obsessão. No No Bones, por sua vez, faltava potência a quase todos os pratos.

Os hambúrgueres são outro exemplo. O de grão-de-bico com especiarias é massudo e pesado. Os outros que provei, de feijão azuki com cenoura e de quinoa com ervas finas são bons, mas estão longe de serem espetaculares. Além disso, há um problema em potencial para o No Bones: muitos vegetarianos que conheço têm sua própria receita de hambúrguer, combinando vegetais e grãos favoritos e uma preparação específica com o que dispõe. Muito do vegetarianismo é isso também, descobrir suas próprias capacidades culinárias. Não penso que voltaria a comprar hambúrgueres veganos congelados quando posso fazer os meus.

Mas o tempero da comida vegana brilha em dois pratos exclusivos do No Bones. O Caveman, “carne” feita com três tipos de feijão e um “osso” de mandioca, é produzido de forma a imitar um pedaço de carne dos homens da caverna. Bem apimentado e saboroso, é uma ótima opção para levar ao forno e assar. Assim como o Ribs ao Molho Barbecue, a costelinha que no Brasil foi popularizada, em sua versão carnívora, pela rede americana Outback. Claro que o ribs do No Bones também não é uma costela de verdade — a iguaria é feita de cogumelo eryngui, cortada como se imitasse uma costela e coberta com um molho barbecue. Fica ótima depois de assada.

Entre pratos gostosos e outros nem tanto, uma questão que pode incomodar jornalistas e assalariados é o preço. A costelinha custa 39,90, para uma pessoa. O Caveman, 29,90, também para um. O custo e a acessibilidade dos produtos são questões recorrentes entre veganos e vegatarianos. Como pode que produtos veganos sejam mais caros se os insumos básicos de produção são, via de regra, legumes e verduras?

Claro que a falta de conservantes e a produção em menor escala jogam contra. Mas esta pode ser uma questão sem solução. Há uma disputa em torno do próprio conceito de mercado no veganismo: muitos apontam que veganismo pressupõe produção local e ingredientes frescos. Por outro lado, há uma acusação de elitismo sobre o movimento, que seria reservado para quem pode pagar mais caro por alimentos sem carnes e derivados.

Se eu voltaria ao No Bones em busca de suprimentos para um churrasco com amigos? Muito provavelmente. Mas, no dia a dia, vou continuar a preparar meus próprios legumes e verduras, sem ossos de mentira nem molho barbecue.