Em meio a crise que tira empregos, quem mais sofre ainda são as mulheres

Em meio a crise que tira empregos, quem mais sofre ainda são as mulheres

Crise é uma palavra do gênero feminino. No Brasil, também é das mulheres o impacto mais forte da crise econômica. No último ano, a recessão econômica entrou no país e fechou as portas e ainda não há – apesar do otimismo de alguns setores – previsão para sair. O ano de 2016 fechou uma inflação de 6,29%, e mesmo dentro da meta do governo, o desemprego assolou o país. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostra que há um contingente de 24,3 milhões de pessoas desempregadas ou subutilizadas.

Ainda assim, o desemprego é duas vezes maior entre as mulheres, de acordo com o IBGE. Elas respondem por uma taxa de desocupação de 13,8% no 4º trimestre de 2016. A dos homens é de 10,7%. No cerne de uma recessão que só perde para o crash de 1930, as mulheres também veem seus espaços institucionais diminuírem, autarquias do poder público que, via de regra, são as primeiras a serem cortadas com a justificativa de ‘enxugar gastos da máquina pública’.

Michel Temer (PMDB) assumiu a Presidência em maio de 2016, após o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A primeira de suas medidas foi anunciar uma reordenação dos Ministérios. Uma das pastas que ‘rodaram’ foi o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. As mulheres, agora, estão “representadas” por uma secretaria no guarda-chuva do Ministério da Justiça e Cidadania.

Enquanto os espaços institucionais diminuem, os femincídios aumentam.

Em Mato Grosso do Sul eles dispararam. Em 2015 foram 16 casos, em 2016 esse número saltou para 34, um aumento percentual de 112,5%. Os dados da Sejusp (Secretaria estadual de justiça e segurança pública) também mostram que as tentativas de feminicídio aumentaram: 59 em 2016, contra 24 tentativas em 2015, 145% a mais.

Outro aspecto é a localidade dos crimes, a maioria no interior do Estado: 76,47% dos casos. O cenário pode indicar a necessidade de políticas públicas no interior. A Casa da Mulher Brasileira (CMB) inaugurada em Campo Grande em fevereiro de 2015 – a primeira do Brasil -, foi uma conquista no combate à violência contra a mulher no Estado. Ainda assim, os dados indicam que os serviços ainda não contemplam Mato Grosso do Sul por completo.

Mulher protesta pelo fim da violência na ‘Cidade dos Anjos’ (Henrique Kawaminami/Midiamax)Mulher protesta pelo fim da violência na ‘Cidade dos Anjos’ (Henrique Kawaminami/Midiamax)

A CMB é outro espaço que balançou e até ameaçou fechar durante a crise. Em novembro de 2016, o atendimento no local ficou comprometido, principalmente, o setor psicossocial, por conta do fim do contrato entre a Prefeitura e a empresa terceirizada, Morhena RH. A empresa oferecia 63 dos 150 funcionários do Executivo que estão lotados na Casa da Mulher. Na data, a Prefeitura alegou que o valor recebido mensalmente da União serve para arcar com gastos básicos como água, luz e até alimentação das vítimas de violência.

O Ministério da Justiça e Cidadania declarou ter repassado de R$ 1.439.877,33, do convênio com o Governo Federal, no dia 28 de novembro. “Não faltam recursos financeiros para a continuidade dos trabalhos oferecidos pela Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande – MS; novos recursos do convênio foram transferidos no mês de novembro de 2016; e a administração local não adotou as providências administrativas necessárias para garantir a continuidade dos atendimentos oferecidos pela Casa”.

A Casa foi inaugurada em fevereiro de 2015, sob a promessa de ser a primeira de outras unidades Brasil afora. Até hoje o governo federal ainda não anunciou previsão para novas unidades.

Basta uma crise
Pesquisadora e professora da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Simone Becker explica que o cenário político reflete uma representação masculina, que ignora, relativiza e subestima as violências sofridas pelas mulheres.

“Acompanhamos do começo ao fim, a estética do falocentrismo reproduzindo feminicídio, com as leis da Mordaça caminhando de mãos dadas com decretos, leis, enfim, medidas provisórias como a 726 que extingue a secretaria de políticas para mulheres (SPM). Com a SPM tal MP extingue outras secretarias federais que singularizavam as particularidades de cada um dos preconceitos que fundem e fundam comportamentos ainda socialmente legitimados como machista/misógino e racista”, explica.

A chacina de Campinas, que ocorreu durante o revéillon, também é lembrada pela pesquisadora para exemplificar uma época em que o discurso de ódio contra as mulheres e contra as leis que as protegem, cresceu. O feminicídio, no interior de São Paulo, foi cometido por um técnico, que matou a ex-mulher, o filho e outras dez pessoas na noite de Réveillon. Das 12 vítimas, 9 eram mulheres, chamadas por ele de “vadias”.

“Sublinho o quanto a chacina em questão é reflexo de uma sociedade que destila e verte seus ódios deliberados como expressões máximas do que não expressa a democracia. A meu ver, democracia rima com interação ou inter-relação de pontos de vistas diversos, e então com a convivência (com-vivência) entre diferenças, assumindo como imprescindível o diálogo em prol da diversidade”, lembra ela.

Para a coordenadora do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, Edmeiry Silara Broch Festi, o Brasil “retrocedeu 10 anos”.

“Importante lembrar que somente a partir de 2003, o Brasil tomou decisões politicas que realmente tinha como propósito a inclusão e afirmação da cidadania de populações marginalizadas na política (mulheres, negros, indígenas). Para as mulheres, a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) ocorreu em 2003 e a partir daí conseguiu implantar o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, de onde se firmou o Programa ‘Mulher: Viver sem Violência’, do qual nosso Estado e a Defensoria são signatários”.

Simone de Beauvoir relacionou a crise com a perda de direitos das mulheres (Reprodução)Simone de Beauvoir relacionou a crise com a perda de direitos das mulheres (Reprodução)

“Com a extinção da SPM no governo Federal tem-se visto o efeito cascata, com a extinção e/ou redução das políticas afirmativas, como ocorreu com a Secretaria de Políticas para as Mulheres na nossa Capital. Tais medidas, chamadas de ‘econômicas’ afetam diretamente os direitos das mulheres, já que se traduz em diminuição do “poder” no mais amplo significado que a palavra possa ter”, complementa.

Sobre a extinção da Secretaria de Políticas Públicas para as mulheres, feita pela atual administração de Campo Grande, o prefeito, Marcos Trad (PSD), negou a exclusão. “Primeiro ela não foi extinta, com a vinda da Casa da Mulher Brasileira, ela começou a exercer as mesmas funções da secretaria, ou seja tivemos uma Supersecretaria e a Casa da Mulher Brasileira, o juizado foi pra lá, delegacia, ela praticamente engoliu a secretaria da mulher. Então, o que nós fizemos? Pra não extinguir de uma vez por todas, a gente a tornou subsecretaria que vai ser como um ator coadvante do ator principal que é a Casa da Mulher Brasileira. Se não tivesse vindo a CMB, não teria porque tornar subsecretaria”.

Ainda assim, a CMB é focada, específicamente, no atendimento à violência doméstica.

“Para promoção das políticas sociais são necessários os recursos financeiros, não temos as secretarias, não temos recursos próprios, não temos prioridades, não temos as medidas que pretendiam enfrentar à violência contra a Mulher, como a manutenção e construção de novas Casas da Mulher Brasileira, dos Centros de Atendimento às Mulheres em região de fronteira seca, fortalecimento e implementação da Lei Maria da Penha”, comenta a defensora.

Edmeire cita um ícone dos estudos de gênero para sintetizar a questão: Simone de Beauvoir.

“É a conhecida frase: ‘Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados’. Não só as mulheres perdem. Elas fazem parte dos grupos atingido pela ´maioria, ‘os cidadãos marginalizados’, que na verdade são trocados pelo poder no momento de crise”.