A guerra perdida contra o tráfico na fronteira com o Paraguai

Diante de organizações de traficantes ousados, ricos e criativos, as autoridades não conseguem deter a entrada de drogas vindas do Paraguai
INMOBILIARIA CAPITAN BADO.
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A derrota
Ainda faltam duas horas para amanhecer e um espesso nevoeiro encurta a visibilidade numa estrada de terra em Mato Grosso do Sul. À frente, um camburão do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) segue vagaroso em uma missão de rotina para capturar narcotraficantes na linha internacional que divide o Brasil e o Paraguai. Está sempre em movimento – montar uma blitz ali, uma rota tão conhecida pela bandidagem, não daria resultado. Milharais a perder de vista, esconderijos perfeitos, margeiam boa parte do trajeto. Antes de as buscas começarem, o capitão R. recomenda: “Se houver troca de tiros, joga o carro na plantação, sempre à esquerda, o lado brasileiro”. “No direito [o paraguaio], existe o risco de encontrar algum criminoso camuflado, com fuzil, metralhadora… Ele pode confundir vocês com polícia. Aqui, nós somos alvo.” Depois de meia hora de viagem, duas luzes brancas se aproximam devagar no sentido contrário. Os quatro policiais descem ligeiros com armas em punho. O veículo encosta, o motorista mostra os documentos e é liberado.

Todos os dias, policiais e bandidos protagonizam um jogo de perseguição e fuga em estradas na fronteira do Brasil com o Paraguai, o maior corredor de distribuição de drogas e armas da América do Sul, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). No ano passado, a polícia apreendeu 2.000 toneladas de drogas em solo brasileiro – um quarto só nas estradas de Mato Grosso do Sul. Quase toda a droga que irriga o mercado nacional vem do Paraguai, recentemente tomado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do Brasil, como ÉPOCA mostrou na primeira reportagem desta série. “O PCC tomou o Paraguai para negociar diretamente com o produtor de maconha e se aproximar do produtor de cocaína na Bolívia, eliminando aos poucos o atravessador”, afirma o delegado da Polícia Federal Antonio Celso dos Santos, ex-adido policial no Paraguai. “A intenção era baratear o custo do produto, monopolizar a distribuição e controlar o transporte.” O Paraguai é um dos cinco mais importantes fornecedores de maconha para mercados internacionais e ainda serve de entreposto da cocaína produzida na Bolívia, no Peru e na Colômbia, a ser distribuída para Brasil e países da África e da Europa.

O preso Júlio César na prisão de Ponta Porã (MS) (Foto: Adriano Machado/ÉPOCA)

Segundo a Inteligência da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) paraguaia, só no último ano o PCC exportou cerca de 200 bandidos para lá. Eles circulam livremente pelas cidades da fronteira e comandam seus negócios ilícitos sem ser notados. Em maio passado, o governo paraguaio contava 105 presos brasileiros em Pedro Juan Caballero, a cidade gêmea da sul-mato-grossense Ponta Porã. A lista ainda não incluía cinco bandidos capturados dias antes com três fuzis, munições, quatro automóveis e itens usados no preparo da droga, como fita adesiva e balança de precisão. “Existem evidências de que são todos do PCC. Na casa, havia um caderno com outras pessoas para serem batizadas”, diz o promotor de justiça paraguaio Samuel Valdez. “Quando prendemos dez, vêm 20. Quando prendemos 20, vêm outros 30.” Eles moravam numa residência de alto padrão, alugada por R$ 5 mil mensais.

Como o produtor no Paraguai nunca leva a droga e o consumidor no Brasil nunca vai buscar, os criminosos que se arriscam pela rota do narcotráfico são essenciais para o negócio. De ônibus, carro ou caminhão, com poucos gramas ou toneladas, as “mulas” ligam uma ponta à outra; são também a parte mais exposta e frágil da cadeia da droga e, por isso mesmo, a mais bem remunerada. Poucos produtos no mundo são tão rentáveis quanto a droga. Um quilo de cocaína é vendido na fronteira com o Paraguai por US$ 5 mil. Em São Paulo, é negociado a US$ 9 mil. Ao chegar à Europa vale pelo menos US$ 50 mil. Com a maconha não é diferente. O quilo comercializado na divisa por R$ 120 custa R$ 1.000 nos grandes centros brasileiros – 730% mais. É o mesmo produto, mas com o risco incorporado.

Atraído pela rentabilidade, Júlio César Rosa, de 37 anos, ex-estudante de Direito, investiu no tráfico quando sua empresa de transporte entrou em dificuldades com os cortes de gastos do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Sem dinheiro para quitar as prestações de apartamento, caminhonete e oito carretas, acumulou uma dívida de R$ 3,5 milhões. “Pensei que era o jeito de salvar minha vida”, diz. Como sempre viajava para perto da fronteira, já havia recebido a oferta de transportar veneno e cigarro. “Quando você está procurando um carro importado, vai numa concessionária de carro importado. Se está querendo fazer coisa errada, procura quem imagina que faz coisa errada.” Simples. Júlio vendeu uma das carretas e investiu em maconha. Tornou-se uma espécie diferente de mula, o empreendedor do tráfico.
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Só comprava e transportava “natural”, nunca cocaína. Seus contatos na fronteira providenciavam tudo, da aquisição da droga ao preparo do caminhão. “Nunca soube de onde vem, como colocam”, diz. Limitava-se a escolher o local em que a droga seria dissimulada. Na primeira carga, pediu que a mercadoria fosse acomodada no assoalho. Por volta das 5 horas da manhã, foi ao local combinado e encontrou o caminhão recheado. Viajou com a carroceria vazia, algo incomum no meio. Para despistar a polícia, as mulas enchem as carretas com grãos, como soja e milho, e camuflam os tabletes de maconha. Foi até o Rio de Janeiro. Ganhou R$ 820 mil líquidos. Em dinheiro. “É um prêmio da loteria. Por que é tão bem pago? Por causa do risco”, afirma. Júlio fez a segunda viagem, para Belo Horizonte, e a terceira, para Fernandópolis, no interior de São Paulo. Na quarta, foi parado pela polícia. Tinha 440 quilos de maconha nos pneus e no tanque em junho do ano passado. “Acabei atolando o que faltava atolar.” Júlio está numa sala do presídio de Ponta Porã. Veste uniforme laranja. Foi condenado a sete anos de prisão – três em regime fechado.

Dia da caça
Não houve perseguição nem troca de tiros durante as mais de dez horas em que o camburão do DOF percorreu a linha internacional e os arredores naquela madrugada de maio. Em 110 quilômetros de percurso, a maior parte em estradas de terra esburacadas, os policiais abordaram 17 veículos, a maioria (11) motos. A fiscalização dessas vicinais é uma ponta importante no combate terrestre ao narcotráfico. “Depois que o veículo com a droga pega o fluxo [estradas movimentadas], fica difícil barrar”, afirma o coronel Kleber Haddad. Só nos cinco primeiros meses deste ano, o DOF já apreendeu quase a mesma quantidade de maconha do ano passado inteiro no estado: 54 toneladas ante 60. O confisco aumentou tanto que uma delegacia da região comprou um contêiner para armazenar a droga.
Uma das motos interceptadas pelo DOF chamou a atenção dos agentes. O condutor era suspeito de ser um “batedor”, como a polícia chama os veículos que vão cerca de 20 quilômetros à frente do carregamento de droga informando se a estrada está “limpa”, livre de fiscalização. Mula e batedor costumam se comunicar por um rádio chamado de papagaio, eficiente mesmo onde celular não funciona. A antena fica em cima do veículo, como a de um rádio comum de carro. O homem da moto tinha conversas duvidosas no WhatsApp. Contudo, nada que sustentasse sua detenção.

O sol já estava forte na chegada a Coronel Sapucaia, divisa com a paraguaia Capitán Bado, que o juiz federal Odilon de Oliveira – expoente no combate ao narcotráfico – chama de capital da maconha. Assim como Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, as cidades são separadas só por uma rua. São necessários poucos minutos para percorrê-las de carro de ponta a ponta. Como todo lugarejo de interior, os moradores ficam na praça, nas ruas e na portas das casas batendo papo. “É muito fácil arregimentar gente para trabalhar para os traficantes. Eles têm olheiros por toda a parte”, diz um delegado da Polícia Civil da região. “A economia da cidade gira em torno da maconha. Quando a gente pega muito pesado na apreensão, o número de assaltos sobe, principalmente roubo de carro e caminhonete.”

Em 2016, a polícia apreendeu 2.000 toneladas de drogas no Brasil – um quarto só nas estradas de Mato Grosso do Sul
O preso brasileiro A. conta que, sempre que chegava a Capitán Bado para comprar maconha para revender no Brasil, ia direto à delegacia fazer o acerto. “Vim buscar uma mercadoria e não quero ser incomodado”, dizia ao comissário, o delegado da polícia paraguaia. Segundo A., mediante um pagamento de 1 milhão de guaranis (cerca de R$ 600), o delegado deslocava uma viatura para acompanhá-lo até a fazenda produtora. A. diz ter feito esse trajeto oito vezes até ser descoberto no Brasil, em dezembro de 2015.

Em julho do ano passado, criminosos se posicionaram numa rua de Capitán Bado para alvejar a delegacia da Polícia Civil de Coronel Sapucaia, construída de frente para o país vizinho. Descarregaram uma espingarda calibre 12 contra a fachada para intimidar os agentes que dormiam na madrugada. “Os traficantes ficam vigiando a gente”, afirma o delegado. “Quando há operação, não podemos nem fazer reunião de planejamento na delegacia.” Entre civis e federais, outras três delegacias da região são visíveis do Paraguai: a de Sete Quedas, de Paranhos e de Ponta Porã. Certa vez, um preso tentou fugir algemado para o lado de lá a fim de escapar da Justiça brasileira.

Ainda com buracos de tiros na parede, a delegacia de Coronel Sapucaia tinha cadeado na porta e o número do celular do plantonista para caso de emergência no dia da ronda do DOF. O delegado mora em outra cidade, a 45 quilômetros. Assim que surgimos na divisa, uma caminhonete preta passa a nos seguir. Permanece sempre do lado paraguaio. Sob o olhar impotente dos policiais que não podem agir em território estrangeiro, um Saveiro prata que vinha no sentido oposto foge para o país vizinho assim que avista o camburão do DOF.

Ligação inoportuna
Um desarranjo com o batedor numa manhã de setembro de 2014 mudou o destino de G. (um preso que não quer se identificar) de forma irreversível. Era por volta das 6 horas da manhã quando ele pegou em Ponta Porã um caminhão carregado de soja – além de 550 quilos de maconha escondidos nos pneus. Ganharia R$ 30 mil. Pelo combinado, um batedor o guiaria até Dourados. De lá, G. cairia no “fluxo” para então seguir sozinho até Piracicaba, interior de São Paulo. Depois de rodar 81 quilômetros em cinco horas, o motor da carreta superaqueceu. G. encostou o veículo, abriu o capô e chamou um mecânico. Esperava ser resgatado, mas foi a polícia quem apareceu. O policial pegou o celular de G. para verificar as mensagens e ligações. Ex-presidiário, 48 anos, G. conhecia o que o esperava se fosse pego. “Tentei conquistar o policial na conversa, mas aí aconteceu: meu telefone tocou…”, diz. Como é de praxe entre as mulas, G. e o batedor haviam combinado um código para atender ligações. Deveriam dizer “bom dia”, para só então a conversa prosseguir. “Alô, alô, alôôô”, disse o policial. O batedor, contudo, não cumpriu o combinado. “A porteira está aberta”, respondeu. O policial perguntou que porteira era aquela. G. tentou emplacar uma história furada com fazendas e gado.

Delegacia do Coronel Sapucaia alvejada com 12 tiros (Foto: Adriano Machado/ÉPOCA)
G. começou a vida carregando madeira derrubada ilegalmente da floresta na região da fronteira. Em meados de 2005, como motorista de ônibus, soube por um colega do esquema para transportar pequenas quantidades de maconha. Comprou 50 quilos e colocou na mala ao lado do banco. Tinha ouvido que a polícia só revistava o bagageiro com os pertences dos passageiros. Na primeira viagem, lucrou cerca de R$ 4.500. “O medo é constante, a gente treme do começo até o fim porque nunca sabe o que vai acontecer no próximo quilômetro”, diz. “Mesmo assim, depois que você vai uma, duas vezes, o olho cresce.” Repetiu o feito na semana seguinte. Na terceira viagem, com 70 quilos na bagagem, ia de Amambai para Campo Grande quando foi parado. O policial quis revistar sua mala. “Foi o cobrador quem me caguetou”, diz. Na primeira passagem pela cadeia, G. ficou dois anos. Naquela época, o crack era consumido livremente nos presídios. “No tempo da pedra, isto era um lugar frio e sombrio. Para onde você olhava era tudo escuro, sujo…”, diz. “Não havia discussão, as brigas eram resolvidas na ponta da faca. Sem faca, não sobrevivia.” G. passou por uma rebelião com três mortes. Os R$ 9 mil que lucrou com as duas viagens “sumiu como se o vento tivesse soprado”.
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Traficantes escondem maconha, cocaína e armas nas carretas de contrabando de cigarro para burlar a fiscalização
Ao sair, G. viciou-se em crack e voltou ao tráfico, desta vez com grandes quantidades escondidas em caminhões. Alto e bastante forte, ele tentou escapar quando foi detido naquela manhã de 2014, denunciado pela chamada telefônica. A caminho da delegacia, no banco do passageiro do caminhão, puxou o freio de mão, abriu a porta e pulou. O policial ao volante disparou quatro tiros enquanto o veículo descia a pirambeira. G. correu para uma aldeia próxima e foi apanhado por índios. Diz ter pago R$ 1.000 para ser solto. Correu mais 30 metros e se escondeu num arbusto de meio metro de altura. Não sabia que debaixo dele havia um formigueiro de lava-pés. Suportou as picadas por alguns minutos. Quando levantou, 30 índios estavam a sua volta. Entregaram G. para a polícia.

G. está preso há dois anos e sete meses. Parou de usar crack, devido à proibição de consumo dentro das cadeias, baixada pelo PCC. Dorme numa cela com quatro camas, ou jegas, hoje ocupada por 22 presos. Oito dormem nas jegas, em posição de “valete” (os pés de um de frente para a cabeça do outro). O restante, em redes penduradas e no chão. Pela manhã, sentam-se enfileirados, com uma toalha na boca para disfarçar o hálito, à espera da vez de escovar os dentes e tomar banho. Sua pena é de oito anos. Como recorreu e teve remissão de pena, está perto de sair. Sem trabalho e com dois filhos pequenos, sua mulher há sete meses não paga a conta de energia. Vivem os três numa casa à luz de velas, à base de doações. G. chora ao lembrar que os filhos, quando o visitam na prisão, raramente se animam com sua presença. Só brilham os olhos porque, na cadeia, conseguem assistir à TV.

Só para os fracos

J., de 16 anos, voltava do trabalho numa quinta-feira de maio quando foi abordado por uma rodinha de conhecidos num bairro pobre de Chapecó, em Santa Catarina. Pensou que fosse para “fumar um baseadinho”, mas descobriu que se tratava de uma “proposta melhor”. “Os piás me ofereceram R$ 3 mil mais 10 quilos”, diz J., com um forte sotaque do interior catarinense. “Falaram: ‘Homem, vai lá, vai ser de boa. Na rodovia, na B-ÉRE, é só você e Deus no carro.” J. fez cálculos mentais. Com 10 quilos de maconha, poderia lucrar R$ 10 mil – uma oportunidade para trocar sua moto por um carro e passar o inverno mais confortável com a namorada. Em dois dias, ganharia R$ 13 mil, bem mais que os R$ 700 mensais que ganhava como mecânico. Não titubeou.
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JR SERRALHERIA EM CORONEL SAPUCAIA.

No dia seguinte, J. foi até Florianópolis e, na rodoviária, uma passagem já comprada o esperava no guichê de uma empresa. A mesma mulher que entregou o bilhete de ônibus lhe deu um celular novo. “Mandaram te entregar”, disse. No meio do trajeto para Ponta Porã, o telefone tocou e o interlocutor passou orientações. Um Palio cinza estaria parado num posto de gasolina próximo ao shopping China, já no lado paraguaio da fronteira, em Pedro Juan Caballero, com a chave em cima do pneu. Ordenou que J. jogasse fora aquele celular, pois haveria outro no carro. J. encontrou o carro com 240 quilos de maconha escondidos no banco de trás, com uma lona. A suspensão do veículo havia sido erguida, para disfarçar o rebaixamento provocado pelo peso da droga. J. enrolou um baseado, verificou o novo celular, comprou umas porcarias para comer e partiu. Antes de completar 80 quilômetros, foi parado numa barreira policial. Não cogitou fugir. “Vai que ainda fico aleijado… Se era para acontecer… Estava tudo escrito”, pensou. Baixou o vidro, tomou um gole de água e saiu do carro sem resistir.

J. tem a pele e o cabelo claros, olhos esverdeados e uma tatuagem de uma rosa (o nome da mãe) ao lado de uma coroa (em referência à idade dela). É um pouco mais jovem que a média de mulas da fronteira. “A maioria tem entre 20 e 30 anos”, diz o delegado Mikail Faria. “Às vezes quer ostentar, mas às vezes é peba também. Mula não tem cor. Classe social tem: é de média para baixo.” Sentado na delegacia em Amambai horas depois do flagrante, J. está com o rosto vermelho de chorar. “Queria comprar qualquer carro, um Golzinho quadrado. Não tem igual para sair com a namoradinha, dar uma bandinha. Tá [sic] certo que a gente é de menor [sic], mas a gente pode ter as coisas também. Só precisa ter cabeça”.

J. já foi pego pela polícia, segundo suas contas, cerca de 15 vezes antes. Sua vida no crime inclui pequenos furtos na rua, assaltos com faca e até com revólver. “Aquilo para mim era uma brincadeira. Nem era por dinheiro, eu ia pelo frio na bariga [sic]”, diz. Filho de uma dona de casa com um soldador, J. sempre teve de tudo. No dia em que foi preso com o carro cheio de maconha, parecia vestido para a balada: perfumadíssimo, de pulseira no braço, calça jeans, camiseta Oceano e um Nike vermelho e preto de quase R$ 1.000. Pouco antes havia mandado uma mensagem para um amigo: “Comprar tênis em 10 X é pros fracos”.

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É consenso entre agentes da Segurança Pública que os narcotraficantes estão mais abusados e inventivos – em especial depois do assassinato do traficante Jorge Rafaat Toumani, em junho de 2016, considerado o rei da fronteira Brasil-Paraguai e que impedia a expansão do PCC no território vizinho. Uma das novidades é a maconha a vácuo. O pacote sem ar, além de ocupar menos espaço, tem mais chance de passar despercebido pelos cães farejadores. Outra tendência é o “cavalo doido”, um tipo de mula que enche o carro com tabletes de maconha ou cocaína. Quando abordado numa barreira, joga o veículo contra os policiais, foge em alta velocidade ou abandona tudo.

Na tarde de 8 de maio, ÉPOCA acompanhou a prisão de um cavalo doido em Dourados. Marcelo Gonçalves, de 32 anos, carregava 2 toneladas de maconha e seu derivado, o skank, numa caminhonete Amarok com placas de Ribeirão Preto. Tentou fugir, mas acabou encontrado por um helicóptero numa vicinal. Algemado e de cabeça baixa, disse que não conhecia o dono da droga e que aceitou levá-la até Campo Grande porque tinha uma dívida de R$ 5 mil. Os veículos usados por cavalos doidos já representam 30% dos 230 carros apreendidos com drogas no pátio da delegacia de combate ao narcotráfico, a Defron.

Em guerra
Numa madrugada de abril, o inspetor da Polícia Rodoviária Federal Waldir Brasil acordou com tiros. Foram precisamente 22 disparos contra sua casa em Dourados, a maior cidade da região de fronteira. Assustados, ele e a mulher rastejaram pelo quarto até o barulho cessar. Souberam que os quatro atiradores estavam dentro de um carro e usavam pistolas de uso restrito. “Acredito que foi represália”, diz Brasil. Uma semana antes, ele havia apreendido dez carretas que contrabandeavam cigarro – um prejuízo estimado de R$ 20 milhões para a quadrilha. O contrabando de cigarro é um negócio milionário, lucrativo e intimamente ligado ao narcotráfico. Pelo menos 45% dos cigarros consumidos no Brasil são contrabandeados do Paraguai. Vendido a R$ 5 nas cidades brasileiras, um maço ilegal tem custo de produção de R$ 1,50 no país vizinho. Num acordo com contrabandistas, os traficantes infiltram toneladas de drogas nas carretas que transportam o cigarro. Muitos policiais recusam suborno para liberar drogas, mas aceitam para afrouxar o cerco ao contrabando, delito tido como menos grave. “O contrabando limpa a pista para outros crimes”, afirma o coronel do DOF, Kleber Haddad. “Deixa a fronteira porosa.” O policial Brasil não é o único sob ameaça de criminosos na fronteira. No ano passado, um policial de Paranhos foi morto com 14 tiros na academia. Durante o velório, traficantes desfilaram nas caçambas de caminhonetes pela linha internacional dando tiros de fuzil para cima para provocar policiais que foram à cidade homenagear o colega.

Estrada na fronteira.O aumento nas apreensões exige aumento de local para estocar drogas. (Foto: Adriano Machado/ÉPOCA)
Estrada na fronteira.O aumento nas apreensões exige aumento de local para estocar drogas. (Foto: Adriano Machado/ÉPOCA)
A guerra do tráfico transformou as cidades da fronteira em alguns dos lugares mais perigosos do Brasil. Proporcionalmente, mata-se mais ali que nos grandes centros, segundo dados da Secretaria de Segurança de Mato Grosso do Sul. Em Ponta Porã são 48 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Em Coronel Sapucaia, o índice chega a 55 assassinatos por 100 mil habitantes – médias muito superiores às do Rio de Janeiro (21) e de São Paulo (12). A explosão da droga trouxe outro efeito, a superlotação das cadeias de Mato Grosso do Sul. Mais de 40% da população carcerária do estado é de traficantes de drogas e armas que atuam na fronteira com o Paraguai e com a Bolívia.

O tráfico espalha a violência nas pequenas cidades da fronteira. Mata-se mais ali que nos grandes centros
Patrulhar o maior corredor do narcotráfico é importante, mas é pouco. A cada apreensão de droga, a polícia dá pequenos golpes numa parte essencial da cadeia do tráfico. Entretanto, não atinge o centro das organizações criminosas. No último dia 1º, uma operação da Polícia Federal em Londrina, no Paraná, prendeu o traficante mais procurado da América do Sul: o brasileiro Luiz Carlos da Rocha, vulgo Cabeça Branca. Rejuvenescido por cirurgias plásticas, ele estava irreconhecível. Atuava havia 30 anos nas sombras, trazendo droga da fronteira para o Brasil. Exportava para os Estados Unidos e Europa, e era fornecedor do PCC e da organização carioca Comando Vermelho. “A prisão do Cabeça Branca é mais uma prova de que a melhor e mais econômica alternativa para combater o narcotráfico é investir pesadamente em inteligência policial”, afirma o ex-adido Antonio Celso dos Santos. “Só assim o Brasil pode vencer essa guerra.” REVISTA EPOCA.