“Como o modelo de facção se nacionalizou e o crime organizado ganhou força no país”

“O pano de fundo da última chacina que ocorreu no sistema prisional do Amazonas é um racha interno dentro de uma facção regional do estado, a Família do Norte (FDN). Em maio, foram 55 mortes em cadeias do estado por causa de uma briga entre os faccionados. No início do ano, o Ceará passou por uma grave crise na segurança pública comandada por outra facção regional, a Guardiões do Estado (GDE), que atua por lá. Os dois casos têm em comum a atuação de gangues regionais, que se expandem a partir do modelo adotado pelo PCC e Comando Vermelho (CV) nos presídios de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública lançado no ano passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao menos 37 facções prisionais atuam atualmente no Brasil. O PCC, a principal organização criminosa que nasceu dentro dos presídios de São Paulo, tem braços em 23 estados, segundo a pesquisa. Já o CV, facção que nasceu no Rio de Janeiro, atua em pelo menos sete estados – além de ter cinco filiados regionais espalhados em outros estados.

Os pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Carolina Dias e Bruno Paes Manso destacam que a expansão das facções para além de seus principais redutos – Rio de Janeiro e São Paulo – foi um fenômeno silencioso que começou a partir da segunda metade da década de 2000 no Brasil.

Para os pesquisadores, quatro fatores ajudam a explicar a “nacionalização” das facções, que saíram da Região Sudeste e ganharam o país. O primeiro fator foi um projeto de expansão do PCC através da rede carcerária, com a criação de “Sintonias” vinculadas organicamente à estrutura paulista. Os pesquisadores destacam também a expansão do CV através da abertura de franquias em outros estados e da coligação com grupos locais.

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Outro fator que contribuiu para a nacionalização do modelo de facções prisionais, segundo Dias e Manso, foi a migração de indivíduos foragidos e vinculados ao CV ou ao PCC e, em geral, envolvidos em roubos a instituições financeiras.

Além disso, os pesquisadores apontam o surgimento de grupos locais, em quase todos os estados, em aliança ou em oposição ao PCC. Os autores citam como alianças ao PCC os grupos GDE (no Ceará), Bonde dos 13 (Acre), Estados Unidos (Paraíba) e Bonde dos Malucos (Bahia). Já em oposição à facção paulista, Manso e Dias destacam as facções FDN (Amazonas), PGC (Santa Catarina), Okaida (Paraíba) e Sindicato do Crime (Rio Grande do Norte).

Regionalização foi favorecida pela atuação das forças de segurança
Para Luis Antonio Pedrosa, advogado e diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, a atuação das forças de segurança pública acabou contribuindo para que facções regionais surgissem e ganhassem forças em outras regiões do país.

“As facções regionais importam o modelo do Sudeste de organização prisional a partir da própria necessidade dos presos e seus familiares”, diz Pedrosa. “Esse modelo foi importado porque o governo federal e os governos estaduais realizaram um processo de repressão a essas facções criminosas criando os presídios de segurança máxima. E, em presídios de segurança máxima, lideranças locais, regionais, que não eram recrutadas ainda por grandes organizações criminosas, cambiaram com as facções nacionais do Sudeste, tiveram contatos com eles e passam a importar isso para outras regiões.”

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Pedrosa cita o exemplo do Maranhão – onde, segundo ele, não existiam facções organizadas nos presídios. “O modelo de facções começou a se consolidar a partir do momento em que lideranças foram para presídios federais e de lá trouxeram essa experiência de organização dos presos”, diz. Atualmente, três facções atuam no estado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública: PCM, Bonde dos 40, além de um braço do PCC.

“Quando começaram o RDD [Regime Disciplinar Diferenciado], os presos de São Paulo levaram suas experiências, seu know how para os outros”, afirma Welliton Caixeta Maciel, professor de antropologia do direito e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB).

Rota da droga e superlotação nos presídios também explicam o fenômeno
Welliton Maciel, porém, também aponta outros fatores que explicam o surgimento de facções em outros estados do país. No Norte e no Nordeste, por exemplo, o surgimento desses grupos tem ligação com a disputa por rotas do tráfico de drogas.

“Essa rota [no caso da Região Norte] é favorecida pelos canais de rios. Isso porque não tem como controlar. A gente não tem uma polícia de fronteira forte, então é um ponto estratégico”, explica Maciel. “O que entra de droga em pequenas embarcações, como canoas, pelos rios no Norte é muito grande. Essa disputa, principalmente esse racha que teve agora na FDN, são as lideranças que querem dominar esse tráfico”, argumenta o professor.

“Boa parte [dos criminosos] perceberam que o modelo de facção é altamente lucrativo porque ele tenta monopolizar o tráfico e alguns outros crimes que são praticadas por elas dentro de um eixo determinado”, concorda Pedrosa. “Eu diria que a Família do Norte é um exemplo típico desse modelo que luta com facções nacionais para poder manter um monopólio de uma determinada rota do narcotráfico que passa por ali”, completa.

Há, ainda, um terceiro fator, segundo o professor da UnB, que tem relação direta com o surgimento de facções como o próprio PCC e o CV: a superlotação das unidades prisionais no Brasil.

“O que acaba favorecendo essas pequenas organizações é de certo modo a superlotação; esse é o grande pano de fundo”, afirma Maciel. “O que eu acho que pesa para a proliferação de outras gangues é essa necessidade dos presos em precisar se autoadministrar, porque o Estado não foi capaz de garantir os direitos mínimos dos presos e eles tiveram que se articular”, completa.

Caso no Amazonas reforça o argumento da superlotação
O Amazonas, que foi palco de duas chacinas nos presídios do estado desde 2017, é um caso que reforça o argumento da superlotação nos presídios. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano passado mostrou que o estado era o que tinha a maior superlotação do país em 2016 – data dos últimos dados disponíveis.

A proporção de presos por vaga chegava a 4,7 nos presídios dos estado. O Amazonas tinha em 2016 uma população carcerária de 11 mil presos – 60% deles, provisórios, ou seja, sem condenação definitiva.

O Ceará, que foi palco da atuação do crime organizado em janeiro, também está entre os estados mais críticos quando o assunto é superlotação. Segundo a pesquisa do FBSP, o Ceará tem uma taxa de superlotação de 3,1 presos por vaga e 48% dos presos são provisórios. O estado fica atrás apenas do Tocantins (3,2 presos por vaga) e do Amazonas, palco de dois massacres em presídios.

No Ceará, uma facção regional também tem ganhado força: a Guardiões do Estado, apontada como organização por trás dos ataques a prédios públicos no início do ano. Além da GDE, o PCC e o CV também atuam no estado.

Transferência de presos não é solução
Para tentar conter a crise penitenciária no Amazonas, o governo federal realizou a transferência de presos envolvidos com facções para presídios federais. Porém, a medida, segundo Maciel, não é solução para o problema.

“Não é presídio federal que vai resolver. Não é transferindo as cabeças e as principais lideranças. Na verdade, esse tipo de preso já mostrou que pode atuar em qualquer lugar e [a facçção] não precisa de um líder, é como se se procriassem. É uma hidra: corta uma cabeça e nasce outra, porque as condições não mudaram”, afirma.

“É um erro que continua a se reproduzir, porque os presídios federais continuam recebendo lideranças regionais por alguma ocorrência – seja um distúrbio, um motim, uma rebelião. As lideranças regionais são deslocadas a presídios federais e lá elas trocam informações, são cooptadas por facções nacionais e voltam para poder disseminar a proposta de sua facção”, afirma Pedrosa. “É comum que os estados utilizem essa remessa de presos para os presídios federais até por uma forma de acalmar a população”, completa.

O qual é a solução, enfim?
Para Maciel, a solução passa por três eixos que devem ser levados em conta pelos responsáveis pela política de segurança pública. “O sistema [penitenciário] vai continuar superlotado e mais chacinas e episódios de barbárie poderão voltar a acontecer enquanto o Estado não atacar a política de drogas, pensar na questão do filtro da entrada [do sistema prisional], [saber] quem são essas pessoas e por que estão sendo encarceradas, e que direcionamento dar para presos provisórios”, afirma o pesquisador da UnB.”
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