O perigoso lado ruim de ser perfeccionista

Em uma das minhas memórias de infância, estou desenhando. Não lembro exatamente o que, mas me recordo claramente do erro. Meu lápis escorrega, um risco acidental desponta no papel e meu lábio começa a tremer. A ilustração desapareceu há muito tempo. Mas o sentimento de profunda frustração, até mesmo vergonha, segue comigo até hoje.

Com mais frequência do que eu gostaria, algo aparentemente sem importância faz com que a mesma sensação venha à tona novamente. Um evento tão pequeno – como amassar sem querer o panetone que levava para a família do meu namorado no Natal – pode ecoar na minha mente por vários dias, acompanhado de vozes que repetem: “Que estupidez! Você tinha como ter feito melhor”.

Fracassar ao tentar alcançar uma meta, mesmo quando tenho consciência de que seria quase impossível, pode me deixar arrasada por um tempo.

Quando uma agente literária me disse certa vez que sabia que eu ainda escreveria um livro, mas que a ideia que tinha apresentado a ela não se adequava ao mercado, me senti vazia por dentro, como se tivesse levado um soco no estômago, algo muito além da decepção.

O lado negativo ocultou o positivo. “Você nunca vai escrever um livro, você não é boa o suficiente”, reverberava minha voz interior, sem se importar em contrariar exatamente o que a agente tinha me dito.

Esse é o problema em relação ao perfeccionismo. Ele é implacável.

Não estou só
E não sou a única a sofrer por ser perfeccionista. Essa predisposição começa na juventude – e está se tornando cada vez mais comum.

Os pesquisadores Thomas Curran e Andrew Hill, das universidades de York St John e Bath, no Reino Unido, conduziram recentemente um estudo de meta-análise com base nos índices de perfeccionismo registrados de 1989 a 2016 – a primeira pesquisa a comparar a tendência entre gerações. E identificaram aumentos significativos entre os recém-formados nos EUA, no Reino Unido e no Canadá.

Em outras palavras, o universitário médio de hoje em dia é muito mais propenso a apresentar uma veia perfeccionista do que um estudante na década de 1990 ou no início dos anos 2000.

“Duas em cada cinco crianças e adolescentes são perfeccionistas”, diz Katie Rasmussen, que pesquisa o desenvolvimento infantil e o perfeccionismo na Universidade de West Virginia, nos EUA.

“Estamos começamos a falar sobre como caminhamos para um caso de epidemia e saúde pública”, completa.

A ascensão do perfeccionismo não quer dizer, no entanto, que as novas gerações estão se tornando mais bem-sucedidas. Significa que estamos ficando mais doentes, mais tristes e até mesmo minando nosso potencial.

Afinal, o perfeccionismo é, em última análise, uma forma autodestrutiva de viver. E é construído sobre uma ironia cruel: cometer e admitir erros são partes fundamentais do desenvolvimento, da aprendizagem, de ser humano. Também te prepara melhor para a carreira, os relacionamentos e a vida em geral. Ao evitar errar a qualquer custo, o perfeccionista consegue dificultar o alcance de suas próprias metas.

Mas as desvantagens do perfeccionismo não se resumem a impedir você de ser mais bem-sucedido e produtivo.

‘Voltei da morte e me descobri presa em meu próprio corpo’
Essa tendência tem sido associada a uma série de condições clínicas: depressão e ansiedade (mesmo em crianças), automutilação, transtorno de ansiedade social e agorafobia, transtorno obsessivo-compulsivo, compulsão alimentar, anorexia, bulimia, estresse pós-traumático, síndrome de fadiga crônica, insônia, colecionismo, dispepsia, dores de cabeça crônicas e, em casos extremos, mortalidade precoce e suicídio.

“É algo que passa por tudo em termos de problemas psicológicos”, diz Sarah Egan, pesquisadora da Universidade Curtin, em Perth, na Austrália, especializada em perfeccionismo, distúrbios alimentares e ansiedade.

“Não há muitas outras condições que fazem isso. ”

“Há estudos que sugerem que quanto mais perfeccionista, mais transtornos psicológicos você vai sofrer”, completa.

Autoelogio de entrevista de emprego?
Culturalmente, o perfeccionismo é muitas vezes visto como algo positivo.

Dizer que você tem tendência a ser perfeccionista pode parecer um autoelogio. É praticamente uma resposta pronta para a célebre pergunta de entrevista de emprego: “Qual é o seu principal defeito?” (Recrutadores, agora vocês acreditam em mim? Eu não estava apenas sendo fofa.)

É neste ponto que ele se torna complicado – e polêmico. Alguns pesquisadores identificam dois tipos: o perfeccionismo adaptativo ou “saudável” (caracterizado pelo alto padrão, motivação e disciplina) e o mal-adaptativo ou “nocivo” (quando o seu melhor nunca parece bom o bastante e não atingir metas te deixa frustrado).

Em um estudo com mais de 1 mil estudantes chineses, cientistas descobriram que os alunos mais talentosos eram, em geral, perfeccionistas adaptados. Os “mal-adaptados”, por outro lado, costumavam não ser tão geniais.

E enquanto pesquisas mostram que aspectos da forma “nociva” – como se martirizar por erros ou sentir que está abaixo da expectativa dos pais – tornam o indivíduo mais vulnerável à depressão, outros estudos sugerem que os atributos do perfeccionismo “saudável” – como o empenho para realizar algo – não reproduzem o mesmo efeito e podem, inclusive, te proteger.

Mas nem sempre é o caso. O simples fato de estabelecer padrões pessoais altos vem sendo associado, por exemplo, à concepção do suicídio. E mesmo que às vezes haja um lado positivo no pensamento perfeccionista, ele é secundário – e, segundo os especialistas, mal interpretado.

Em 2016, Hill e Curran constataram durante uma meta-análise de 43 estudos sobre perfeccionismo e burnout (esgotamento) que quem estipula parâmetros elevados – sejam atletas, trabalhadores ou estudantes – apresentam apenas uma pequena ou nenhuma vantagem na comparação com aqueles que não determinam. Já indivíduos que manifestam o perfeccionismo mal-adaptativo sofrem significativamente mais burnout.

“Existe uma ideia de que, em alguns casos, o perfeccionismo pode ser saudável e desejável. Com base nos 60 estudos que fizemos, achamos que isso é um mal-entendido”, afirma Hill.

“Trabalhar duro, ser comprometido, diligente e assim por diante, são todas características desejáveis. Perfeccionismo não é adotar padrões altos. É estabelecer padrões irreais. Não é um comportamento. É a maneira como você pensa sobre si mesmo”, explica.

A princípio, pode ser difícil diferenciar pessoas motivadas e conscienciosas de quem é perfeccionista
Voz crítica
Na verdade, muitos atributos que com frequência chamamos de perfeccionismo “saudável” – como a busca pela excelência – não são de fato perfeccionismo.

Segundo especialistas, trata-se apenas da conscienciosidade, o que explica por que pessoas com essas tendências geralmente apresentam resultados diferenciados nos estudos.

O perfeccionismo, argumentam eles, não é definido pelo estabelecimento de metas elevadas ou pelo grau de empenho no trabalho. É aquela voz crítica interior.

Veja o exemplo de um aluno que estuda bastante e recebe uma nota ruim. Se ele diz a si mesmo: “Estou decepcionado, mas tudo bem; ainda sou bom de uma maneira geral”, é saudável. Agora, se a mensagem for: “Eu sou um fracasso. Eu não sou bom o suficiente”, está caracterizado o perfeccionismo.

Essa voz interior critica aspectos distintos em cada indivíduo – pode ser trabalho, relacionamento, organização, forma física.

Minhas tendências perfeccionistas podem diferir muito das de outras pessoas. Eu poderia pedir a alguém que me conhece bem para enumerá-las. Quando contei ao meu namorado que estava escrevendo essa reportagem, ele respondeu a mensagem na hora com uma série de emojis de risada.

Segundo Hill, como consequência, perfeccionistas e não perfeccionistas “podem parecer iguais à distância e por um curto período de tempo”.

“Mas à medida que você se aproxima e os observa no longo prazo, vê que as pessoas conscienciosas têm mais jogo de cintura para lidar com as situações quando algo dá errado.”

“Perfeccionistas sentem cada solavanco na estrada. São muito sensíveis ao estresse”, completa.

Quero perfeito, logo desisto
Os perfeccionistas conseguem fazer uma tempestade em um copo d’água ou transformar uma brisa em um furacão de categoria cinco.

Pelo menos, é assim na percepção deles. E, porque as ironias nunca acabam, o modo como se comportam deixa eles, na verdade, mais propensos a falhar.

A tenista Serena Williams se autodeclara perfeccionista – destrói raquetes e se culpa quando algo dá errado, explosões que já lhe custaram a partida
Em um experimento de laboratório, Hill deu metas específicas para perfeccionistas e não perfeccionistas. O que ele não disse foi que o teste era armado: nenhum dos grupos seria bem-sucedido.

Curiosamente, as duas equipes dedicaram a mesma quantidade de esforço para desempenhar a tarefa. Mas um grupo se sentiu muito mais frustrado em relação ao processo como um todo e desistiu mais cedo. Adivinha qual?

Diante do fracasso, “os perfeccionistas tendem a responder de forma mais dura emocionalmente. Eles sentem mais culpa, mais vergonha”, diz Hill. E também sentem mais raiva.

“Eles desistem mais facilmente. Têm tendência a fugir quando as coisas não podem ser perfeitas”, explica.

Isso, obviamente, impede a pessoa de alcançar suas metas. Em mais de 60 estudos com foco em atletas, por exemplo, Hill descobriu que o maior indicador de vitória no esporte é simplesmente o treino. Mas se os perfeccionistas não apresentam um bom desempenho, podem desistir de treinar.

Isso me faz lembrar da minha própria infância. Eu evitava – ou começava e abandonava – praticamente todos os esportes. Se eu não fosse boa em algo desde o início, eu não queria continuar, especialmente se tivesse mais gente assistindo.

E, de fato, vários estudos identificaram uma correlação entre perfeccionismo e ansiedade de desempenho, inclusive em crianças de até 10 anos.

Perfeccionismo e ansiedade de desempenho muitas vezes estão associados na infância e adolescência, diz pesquisa
O problema é que, para os perfeccionistas, a performance está ligada ao senso de identidade. Quando não conseguem alcançar algo, eles não se sentem decepcionados em relação ao que fizeram, mas, sim, vergonha de si mesmos.

Ironicamente, o perfeccionismo se torna uma tática de defesa para manter a vergonha à distância: se você é perfeito, nunca falha; e se nunca falha, não há por que se envergonhar.

Como resultado, a busca pela perfeição se torna um ciclo vicioso. E, uma vez que é impossível ser perfeito, todo esforço acaba sendo em vão.

Onde mora o perigo
O perfeccionismo também é perigoso. Um número recorde de jovens está sendo diagnosticado com transtornos mentais, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Depressão, ansiedade e pensamentos suicidas são mais comuns atualmente nos EUA, Canadá e Reino Unido do que há uma década.

Uma pesquisa mostrou que tendências perfeccionistas geram algumas dessas condições – como depressão, ansiedade e estresse –, mesmo quando traços da personalidade, como neuroticismo (propensão a emoções negativas), são controlados pelos cientistas.

Para piorar, a autocrítica pode desencadear sintomas depressivos, que conseguem, por sua vez, agravar o senso autocrítico, gerando um ciclo angustiante.

Os problemas de saúde mental não são causados apenas pelo perfeccionismo, mas alguns distúrbios podem levar a ele. Uma pesquisa recente descobriu, por exemplo, que estudantes universitários que têm ansiedade social são mais inclinados a se tornarem perfeccionistas. Mas não vice-versa.

Também foi constatado que a autocompaixão – virtude que falta aos perfeccionistas – é uma das formas de proteção mais poderosas contra a depressão e a ansiedade. Já a autocrítica, na qual eles são tão bons, leva à depressão.

Quando se trata do caso mais extremo, o suicídio, diversos estudos revelam que o perfeccionismo poder ser mortal. Ele deixa os pacientes deprimidos mais propensos a pensar em tirar a própria vida, além de aguçar sentimentos de desesperança.

Um estudo de meta-análise recente, o mais completo realizado até hoje sobre o elo perfeccionista-suicida, descobriu que quase todas as tendências perfeccionistas – como medo de errar, sentir que nunca será bom o suficiente, ter pais exigentes ou simplesmente padrões pessoais altos – estão com frequência relacionadas a pensamentos suicidas. As duas exceções são: ser organizado ou exigir dos outros.

Alguns desses fatores, particularmente a pressão dos pais e as preocupações perfeccionistas, foram associados a mais tentativas de suicídio.

“O pensamento em preto e branco pode levar os perfeccionistas a interpretarem os fracassos como catástrofes que, em circunstâncias extremas, são vistos como justificativas para a morte”, escreveram os pesquisadores.

“Nossas descobertas também respaldam uma literatura mais ampla que sugere que quando as pessoas sentem que seu mundo social é repleto de pressão, julgamento e hipercrítica, elas pensam a respeito e/ou recorrem a várias formas possíveis de fuga (abuso de álcool e compulsão alimentar, por exemplo), incluindo suicídio.”

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O perfeccionismo está relacionado a mortes prematuras – talvez devido ao estresse que gera no corpo
Enquanto pessoas conscienciosas tendem a viver mais tempo, os perfeccionistas morrem mais cedo.