Fantasia ou realidade, como falar sobre morte com as crianças?

Fantasia ou realidade, como falar sobre morte com as crianças?
Com seu manto e capuz negros, foice e gadanha em mãos em um ambiente quase sempre cercado de escuridão e árvores secas, a imagem que popularmente construímos sobre a morte no Brasil reforça ainda mais os estigmas e tabu que envolvem o tema. Se a iconografia da morte enche de medo muitos adultos, a simbologia também não ajuda a desmistificar o assunto quando o interlocutor é uma criança.
De acordo com a psicopedagoga, Luciane Sperafico, especialista em Neuropsicologia, as crianças percebem quando alguém morre, seja por notarem a tristeza que as rodeiam ou por sentirem falta da pessoa que morreu.
O sentimento de luto, explica, é importante para o amadurecimento da criança, mas, ao mesmo tempo, se a perda não for tratada com sinceridade, explica a especialista, é possível que deixe marcas negativas na vida ao longo da vida.
“Antes dos dois anos, a criança ainda não tem a capacidade para compreender o conceito de morte, mas pode revelar medos e alterações na rotina. Muito carinho, compreensão e paciência bastarão para que ultrapasse a situação. A partir dos seis anos, sensivelmente ela já percebe o conceito de morte. De uma forma calma, verdadeira e honesta o tema deve ser apresentado da forma mais simples possível. ‘Morreu porque estava doente’, ‘porque teve um acidente’, sem pormenores, ‘porque estava velhinho’, etc.”, explicou Luciane.
Sem mentiras
Para a psicopedagoga não é saudável que a morte seja explicada com histórias ou metáforas, como: “dormiu e não vai acordar”, ou que passam a ser “estrelinhas”. A especialista aconselha deixar a criança processar a informação que recebeu, esperar que ela faça suas próprias perguntas e então respondê-las da forma sincera e simples ao que ela quiser saber mais.
Segundo Bruna Genaro Martins, mestranda no Programa de Pós-graduação em Ensino em Saúde da UEMS, também formada em psicologia, ao falar, por exemplo, que “foi viajar”, a criança pode inclusive desenvolver um sentimento de abandono ao se dar conta que a pessoa nunca mais vai voltar.
“Um ponto muito importante, antes de responder a uma criança, ao invés de dar o meu conceito para ela, eu perguntar o que ela acha sobre aquilo: ‘O que você entende que é a morte? A morte para você é o que?’. Partindo desta primeira pergunta eu posso compreender o que ela entende por morte, se ela entende que uma pessoa que morreu não volta à vida”, destacou Bruna Martins.
“Estudos têm mostrado que transtornos psiquiátricos na vida adulta, como depressão e ansiedade, estariam associados, entre outros aspectos, à perda por morte de um ente querido na infância, especialmente os pais. Por este motivo é de vital importância que saibamos como agir neste momento delicado com a criança enlutada para não ter problemas emocionais no futuro”, alertou a psicopedagoga Luciane Sperafico.
Luto
A psicopedagoga destaca ainda que é normal que haja alterações de rotina da criança (sono, alimentação). Segundo a profissional, é preciso ter calma, carinho e seriedade, ir partilhando os sentimentos com a criança, como tristeza, saudades e lembranças, para que ela se sinta à vontade para partilhar os seus pensamentos e sentimentos também.
“O luto é um processo. E é normal que tenha inicialmente uma fase de choque/crise, seguida de uma fase de desorganização e finalmente uma fase de organização de seus pensamentos e sentimentos. Não podemos ignorar a importância de seus sentimentos, como também a priva-las de se desenvolverem emocionalmente criando estratégias e capacidades psicológicas para lidar com a dor e o sofrimento, integrando a morte como um acontecimento natural da vida passível de ser ultrapassado”, explica.
O luto não precisa estar diretamente ligado a um processo da morte de alguém, pode estar relacionado a outros diversos processos de perdas e mudanças intensas que vivenciamos na vida, “desde objetos na infância, moradia, amigos, desde que represente uma perda significativa. O luto é uma angústia de perda, é um processo vivido e sentido totalmente no individual”, afirma Luciane.
E na escola?
A mestranda em Ensino em Saúde, Bruna Genaro Martins, também está produzindo juntamente com sua dissertação um guia para ajudar professores a falar sobre a morte à crianças. O interesse parte do que apontam pesquisas que revelam grande despreparo dos professores em abordar o tema.
Segundo Bruna, ao falarmos sobre a morte, além de trocarmos experiências e temores, também repensamos a vida e a partir disso podemos dar um novo significado para aquilo que estamos passando hoje. “Falar sobre a morte com a criança é prepará-la para um fato que ela vai vivenciar cedo ou tarde. A morte é a perda maior que a gente vai vivenciar ao longo da vida, mas também vivenciamos outras perdas, uma criança pode perder um cachorrinho, um pai… são muitas perdas, até muitas vezes são coisas simbólicas. Eu não perdi de fato, mas eu mudei de escola, eu vivencio isto como uma perda”, ressaltou a mestranda.
As acadêmicas do 3º ano de Pedagogia, Liliane Rodrigues Sanches, Elione da Silva Santiago, Marilza Carneiro Zanan Piveta, Janaina Amarilha Viero, Leila Hiroko Kodama e Ariana Ferreira da Silva estão construindo histórias infantis sobre o tema “Morte”, que farão parte do manual para professores. Para elas, a literatura infantil retrata o mundo de um modo mais lúdico, mais adequado à linguagem infantil, usando a imaginação principalmente, o que ser um instrumento útil para as práticas educativas, visando trabalhar a questão da morte e da vida.
As estudantes lidam com estas situações na prática e percebem que sem capacitação o professor, muitas vezes, age da forma contrária ao orientado. “Teve uma criança que o pai e o avô faleceram em poucas semanas, então a professora falou com os alunos da sala que não tocassem no assunto quando ela chegasse, que conversassem como se nada tivesse acontecido. Mas pelos estudos nós vemos que tem que se conversar. Enquanto a criança não estava indo à escola, a professora tinha que conversar com os alunos da classe, falar sobre a morte, para que a criança fosse acolhida ao voltar ao ambiente escolar”, ressaltou, Liliane Rodrigues Sanches.
A acadêmica Ariana Ferreira da Silva passou por situação semelhante enquanto desenvolvia suas atividades de estágio. Ela propôs contar a história do livro “Um Minutinho”, que fala sobre a morte que veio buscar a vovó. “Mas a professora disse que não poderia falar que a vovó iria morrer, apenas que um senhor veio buscar a vovó para dar um passeio, mas que a vovó iria retornar. É um tabu ainda dentro da escola, a professora alegou que não pode falar da morte porque não sabe como a criança irá reagir, então tive a orientação de não falar de morte, somente coisas felizes, animadoras”, lembrou.