O que a Lava Jato revela sobre a origem “mágica” do Direito

captionSurgido a partir de mitos gregos, o direito guarda semelhanças com o universo mítico-religioso

Réus declaram “crer” na Justiça, procuradores dizem conduzir uma “cruzada” contra a corrupção, juízes são descritos como “heróis”.

As semelhanças entre o vocabulário ligado à operação Lava Jato e o linguajar do universo mítico-religioso não são coincidência, dizem juristas entrevistados pela BBC Brasil.

“Na origem do Direito, era impossível separá-lo da religião”, diz Ari Marcelo Solon, professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ele conta que nosso sistema jurídico se originou a partir de mitos que circulavam na Grécia vários séculos antes de Cristo.

Quase três milênios se passaram, mas o laço jamais se desfez completamente, afirma o professor – o que ajudaria a explicar a esperança quase religiosa que muitos brasileiros depositam na Lava Jato e a fé numa redenção por meio da punição dos corruptos.

Deusa da Justiça

Nos tempos do poeta Homero, conta Solon, a deusa Têmis personificava os ideais de justiça. Segunda esposa de Zeus, filha de Urano e Gaia, era também Têmis quem mantinha a ordem no Olimpo, a morada dos deuses.

Solon diz que a deusa era representada por um monte de pedras, o que indicava a firmeza da justiça. Na ágora, espaço de discussão onde também havia pedras, reis se reuniam para tomar decisões guiados por decretos divinos.

Séculos mais tarde, em Roma, Têmis se transformou na deusa Iustitia, origem do termo justiça. Hoje, estátuas da deusa, de olhos vendados e balança à mão, guardam a entrada de muitos tribunais no Ocidente.

Com o tempo, muitos Estados se tornaram laicos, e Direito e religião se separaram formalmente. Porém, para alguns pensadores – como os filiados ao realismo jurídico, movimento que despontou nos EUA e na Escandinávia no início do século passado – essa cisão nunca ocorreu pra valer.

Na tese “A César o que é de Deus: Magia, Mito e Sacralidade do Direito”, defendida na USP em 2008, o jurista e diplomata Rafael Prince analisa as semelhanças entre o Direito e os rituais xamânicos, a feitiçaria e outras práticas de povos ditos “primitivos”.

Segundo Prince, o Direito é “um fenômeno mágico”, que opera em moldes parecidos com os de religiões tradicionais, ainda que muitos juristas o tratem como ciência.

Ele afirma que, por mais que juízes digam se guiar apenas pela lei ao proferir sentenças, suas decisões sempre têm uma boa dose de subjetividade – o que, para Prince, não significa que a impessoalidade, objetividade e transparência não devam ser perseguidos por legisladores e operadores do Direito.

“O conteúdo das normas do Direito mudou ao longo do tempo, mas a forma de pensar juridicamente é, por natureza, uma forma de pensamento mágico ou religioso – uma linguagem mitológica”, afirma.

Ele diz que o elo entre magia e Direito é evidenciado, por exemplo, pelo papel que a palavra desempenha nos dois sistemas.

“As palavras são o núcleo do poder mágico”, explica o jurista.

Citando o linguista alemão Winfried Nöth, ele afirma em sua tese que a palavra inglesa “spell” significa tanto soletrar quanto fórmula de encantamento, e que “glamour”, que no passado significava “bruxaria”, tem a mesma raiz que “grammar” (gramática).

“Para o povo, o conhecimento de gramática era evidentemente um saber mágico”, disse Nöth.

Da mesma forma que um ritual de magia requer a entoação de certas palavras, a posse de um funcionário público ou um casamento – duas cerimônias regidas pelo Direito – só têm efeito mediante a pronúncia de expressões específicas.

As palavras são tão poderosas no Direito, diz Prince, que com elas juízes podem “mudar para sempre o destino de pobres mortais”.

Os paralelos vão além. “As fórmulas mágicas costumam ser barrocas e repetitivas, e não é diferente com os textos jurídicos”, afirma Prince.

“O exorcista, por exemplo, ao recitar suas orações e conjurações, deve se mostrar muito mais terrível que o demônio dentro do paciente (…) Da mesma forma, os advogados não poupam esforços em falar numa linguagem rebuscada e incompreensível aos leigos, que, admirados com o impressionante ‘juridiquês’, não hesitarão em confiar na capacidade dos doutos bacharéis.”

Prince afirma que há várias palavras vazias de sentido no Direito, e que muitos conceitos jurídicos – como propriedade, direito subjetivo e crédito – não têm qualquer significado fora do universo das leis.

E assim como as religiões têm templos, o Direito tem tribunais, espaços igualmente controlados por rígidas regras por onde transitam juízes, advogados e promotores – a quem Prince chama de “sacerdotes da religião jurídica”.

Para ter acesso a esses locais, deve-se passar por uma série de ritos, como a graduação em Direito e o concurso para a magistratura – processo não muito diferente da iniciação por que passam padres, monges e xamãs, afirma o diplomata.

Direito e mito

Além da origem comum, Prince diz que Direito e religião têm o mesmo papel na sociedade: “resolver conflitos sociais, ao conciliar, em sua estrutura harmônica, expectativas e valores dissonantes”.

Quando um juiz define uma pena para um crime, está compensando o crime com outro ato e agindo para restabelecer o equilíbiro quebrado pelo criminoso.

“O processo judicial, em sua forma e linguagem, é um meio de reviver mitos fundamentais da nossa sociedade”, diz Prince.

No caso da Lava Jato, ele afirma que o mito em questão é o de que “os maus devem ser punidos”.

Segundo o jurista, no imaginário de muitos brasileiros, os procuradores da operação e o juiz Sérgio Moro são vistos como figuras míticas que “vão salvar o país de todo o mal”.

Ele alerta para o risco, porém, de que os holofotes façam o juiz abandonar o papel sagrado de mediador, convertendo-se em outro arquétipo mitológico: “o inquisidor, o herói paladino da justiça”.

“Isso, sem dúvida, é ruim para a legitimidade do Judiciário – além de ilegal.”

Falsa religião

Para Ari Solon, professor da USP, a Lei das Doze Tábuas – legislação na origem do Direito romano – é a base dos processos da Lava Jato.

O documento, que codificou delitos e definiu penas para malfeitos, marcou o início de uma era na qual governos passaram a aprovar leis aplicáveis a todos os cidadãos. Solon diz que, ao sistematizar mitos e valores arraigados na população, o Direito romano surgiu como uma “força ética”.

Para ele, o elo entre Direito e ética se fragilizou desde então. “O Direito foi se afastando de sua essência e virando algo só formal: uma falsa religião.”

Solon diz que, para resgatar os valores originais greco-romanos, pode ser útil estudar como se organizam povos que não foram engolidos pelo Direito ocidental, como indígenas brasileiros.

Esses grupos, segundo o professor, podem nos mostrar outras formas de conciliar mitos e regras de convívio – ainda que, para alguns, eles ainda vivam na “Idade da Pedra”.

Solon então lembra o elo entre o Direito e as pedras que simbolizavam Têmis, a deusa grega da justiça. As pedras, conta ele, também abundavam no Monte Sinai, onde foi revelada a Moisés a Torá, o livro sagrado do Judaísmo.

“Não é chocante que todos adorem a pedra”, diz o professor.

“Há paradigmas comuns a todas as civilizações. A religião tem que vir da concretude.”

Fonte: BBC Brasil