Quando uma célula se torna uma pessoa? O consenso científico sobre a polêmica dos embriões

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Julgando um processo recente sobre a destruição acidental de embriões em uma clínica de fertilidade americana, a Suprema Corte do Estado do Alabama determinou, a partir da legislação estadual, que todos embriões são “crianças”.

Mas isso contraria o consenso médico e científico global sobre quando células reprodutivas passam a ser vidas humanas.

Em 2023, três casais acusaram de homicídio culposo o Centro Médico Mobile Infirmary, no Alabama. Seus embriões, remanescentes de um tratamento de fertilização in vitro (FIV), estavam armazenados na clínica e foram acidentalmente destruídos, segundo a decisão publicada em 16 de fevereiro.

A Suprema Corte estadual decidiu então que embriões, incluindo os mantidos fora do útero, são “crianças”, com base na Lei de Homicídio Culposo de Menores do Estado. A decisão reverte o indeferimento de um tribunal de instância inferior sobre o caso e permite que a ação por homicídio culposo continue em andamento.

A decisão trouxe à tona questionamentos sobre a definição de “pessoa” ou “criança”, o que poderá ter ramificações legais futuras para os médicos praticantes de FIV e seus pacientes. Mas o consenso médico e científico afirma que embriões são células capazes de criar vidas humanas e não, vida real.

“Qualquer pessoa com olhos (talvez com a ajuda de um microscópio) pode reconhecer que um óvulo fertilizado no congelador de uma clínica não é o mesmo que um bebê”, afirma o porta-voz da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, Sean Tipton. “A Suprema Corte do Alabama pode desejar que eles fossem iguais, mas eles nitidamente não são.”

O que dizem os especialistas americanos

Outras agências e organizações americanas também entraram na discussão.

O Colégio Americano de Ginecologistas e Obstetras publicou uma declaração sobre a decisão, dizendo:

“O resultado desta ação certamente irá afetar o acesso ao tratamento de fertilidade em todo o país, já que cada vez mais legislativos estaduais criam políticas baseadas na definição ideológica e não científica do que é uma pessoa.”

A União Americana de Liberdades Civis do Alabama também publicou uma declaração:

“A Suprema Corte do Alabama excedeu gravemente sua atuação ao classificar embriões congelados, óvulos unicelulares fertilizados, como crianças. A Justiça cruzou uma fronteira fundamental ao atribuir personalidade a algo criado em laboratório que existe fora do corpo humano.”

Diferentes definições em outras partes do mundo

A determinação de quando as pessoas começam a existir e o que deve ser definido como embrião vem sendo alterada nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, à medida que avança a tecnologia.

Um artigo de perspectiva publicado em 2023 na revista Cell discute a ética da pesquisa embriônica. Seus autores de Áustria, Espanha, EUA, Holanda e Reino Unido propõem uma definição legal.

Eles definem o embrião como “um grupo de células humanas sustentadas por elementos que atendem às funções uterinas e extraembriônicas que, combinadas, têm o potencial de formar um feto”.

Os pesquisadores propõem essa definição devido às novas tecnologias, que permitem a formação de embriões sem fertilização – seres que podem nunca ter sido embriões.

Pouco depois do nascimento da ovelha Dolly (o primeiro mamífero clonado), em julho de 1996, alguns países começaram a alterar suas definições.

A Holanda, a Bélgica, a Alemanha e outros baseiam suas novas definições na “potencialidade”.

Em vez de definir o embrião como vida humana, esses países consideram que o zigoto, que é uma única célula e o início de um embrião, “é capaz de gerar um ser humano” e não um ser humano no seu estado final.

Mas a Espanha segue uma visão um pouco diferente. O país define o embrião como “uma fase do desenvolvimento embriônico”, fase essa que começa no útero.

As definições do que é um embrião são ligeiramente diferentes, mas a decisão da Suprema Corte do Alabama de que um embrião congelado é uma criança não tem precedentes.

“A decisão do Alabama é baseada em uma visão idiossincrática do embrião que é muito marginal”, segundo Nicolas Rivron, do Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia Austríaca de Ciências, em Viena. Ele é o principal autor do artigo de perspectiva publicado pela revista Cell.

Rivron explica que a biologia define o embrião como um grupo de células que, potencialmente, pode formar um feto.

“A definição legal de embrião é diferente da definição biológica porque não tem a intenção de descrever o embrião cientificamente, mas sim protegê-lo”, prossegue ele.

“As definições legais deveriam se basear em informações da visão científica, mas elas são elaboradas com base em considerações que variam ao redor do mundo, enraizadas em crenças filosóficas, éticas, sociais ou culturais.”

Onde surge a pessoa?

Em uma postagem publicada em 2013 no blog da Biblioteca Pública de Ciências (que oferece acesso livre a publicações de ciência e medicina online), a geneticista Ricki Lewis traçou um cronograma do desenvolvimento do embrião e apresentou sua própria opinião sobre onde pode começar a vida humana.

Para Lewis, “a capacidade de sobreviver fora do corpo de outra pessoa define um limite tecnológico prático para definir quando começa a vida humana sustentável. Ter um genoma funcional, camadas de tecidos, corda dorsal, batimentos cardíacos… nada disso importa se o organismo não puder sobreviver onde sobrevivem os seres humanos.”

Richard Paulson, diretor do Departamento de Fertilidade da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, escreveu em um editorial para a publicação da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (F&S Reports) que “o conceito que diz ‘a vida começa na concepção’ não é científico, nem faz parte de nenhum ensinamento religioso tradicional [antigo]”.

Paulson prossegue: “Os autores da Bíblia (e de outros textos religiosos) não sabiam nada sobre óvulos, esperma ou fertilização. Foi somente depois que a ciência médica revelou as etapas básicas do desenvolvimento embriônico que, em meados do século 20, alguns grupos religiosos se apropriaram da ideia de que a vida humana deve ‘começar’ na fertilização.”

Quais são as práticas atuais de destruição de embriões não utilizados em FIV?

Nos procedimentos de FIV, existem muitas vezes embriões excedentes ou supernumerosos. Os pacientes precisam decidir se seus embriões devem ser armazenados, doados ou destruídos.

“Em FIV, como na natureza, apenas uma pequena proporção dos óvulos fertilizados consegue ser implantada e crescer, mesmo quando criamos as condições ideais para uma gravidez bem sucedida”, explica a médica especialista em fertilidade Sue Ellen Carpenter, da clínica Bloom Fertility em Atlanta, na Geórgia (EUA).

“Para mim, os embriões ocupam um espaço moral exclusivo. Eles são vida em potencial e, por isso, exigem respeito e cuidados especiais.”

No caso analisado pela Suprema Corte do Alabama, uma paciente entrou no berçário criogênico em 2020 e retirou os embriões em questão do congelador. Quando ela os derrubou acidentalmente no chão, os embriões “queimaram sua pele por congelamento”, segundo a decisão da corte.

A clínica do Alabama não destruiu os embriões congelados dos três casais intencionalmente. Mas outros embriões coletados para FIV são rotineiramente destruídos por clínicas quando não atendem aos critérios de transferência para implante no útero ou se os pacientes conseguirem conceber e não desejarem ter mais filhos.

Laboratório
Legenda da foto,Nas clínicas de FIV, embriões que não atendem aos critérios necessários para serem transferidos para o útero são rotineiramente destruídos

Muitas vezes, esses embriões são destruídos sem qualquer cerimônia.

Um estudo de 2019 coletou dados de 703 questionários de clínicas de 65 países diferentes sobre a prática de descarte dos embriões não utilizados que os pacientes não planejam ou não podem utilizar. Os resultados revelaram que a maior parte dos médicos descarta os embriões em uma “lata de lixo” específica.

Em um artigo de 2022 publicado na revista Obstetrics & Gynecology, autores de diversas universidades americanas comentaram sobre preocupações suscitadas pela decisão da Suprema Corte americana no caso Dobbs x Jackson Women’s Health. A decisão reverteu o caso Roe x Wade, que concedia o direito federal ao aborto no país.

Os pesquisadores observam que a perda embriônica é “parte rotineira da natureza”:

“Quando a nova legislação sobre o aborto define uma pessoa a partir do momento da fertilização, ela abre as portas para a regulamentação de embriões no laboratório de FIV. Podem ser promulgadas leis que impossibilitem a criopreservação de embriões, devido ao potencial de perda embriônica.”

Os pesquisadores questionam se pacientes poderiam ser forçados a dar prosseguimento a novas transferências de embriões, mesmo se não desejarem ter mais filhos ou se seria exigido um pagamento pela armazenagem “perpétua” dos embriões.

Estas e outras questões permanecem sem resposta, após a decisão tomada pela Suprema Corte do Alabama. Em vista disso, diversas clínicas de fertilidade do Estado já deixaram de fornecer tratamentos de FIV.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.