Como Japão ‘parou no tempo’ depois de milagre econômico

Japão tem fama de ser um país moderno, com tecnologia de ponta, quase futurista.

Mas, no ano passado, os japoneses comemoraram o fim de uma guerra um tanto quanto inusitada.

Uma guerra silenciosa, que passou despercebida para maior parte do mundo. Uma guerra contra… disquetes.

Em 2021, o então ministro de Transformação Digital, Taro Kono, reclamou que os japoneses ainda eram obrigados a usar disquetes quando precisavam mandar documentos ao governo.

Três anos depois, essa exigência foi finalmente aposentada, e ele declarou triunfante: “Vencemos a guerra contra os disquetes!”.

O exemplo é simbólico de como o Japão, que costumava ser visto já como o país do futuro, acabou ficando preso no passado.

Nos anos 1980, muito do que existia de mais moderno no mundo vinha do Japão.

Na época, a economia japonesa se tornou a segunda maior do mundo e muita gente achava que ela poderia até acabar ultrapassando a dos EUA — inclusive os próprios americanos.

Mas não foi isso que aconteceu. No fim, o Japão que todo mundo esperava nunca veio. O país simplesmente estagnou.

Barco em cidade cheia de neons
Legenda da foto,Japão é conhecido como um dos países mais modernos do mundo. Mas país também tem muitas contradições

Milagre japonês

Quando a Segunda Guerra acabou, o Japão estava destruído.

Como parte de um projeto pra se reerguer, o país decidiu se voltar para a indústria – e teve um aliado muito importante: os EUA.

É o que explica o professor Hiroaki Watanabe, da Universidade Ritsumeikan de Kyoto.

“Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava vivendo um sistema dividido em dois polos, capitalistas versus comunistas, durante a Guerra Fria. E claro que, para os EUA, o Japão passou a ser muito importante”, diz Watanabe.

Na época, tudo indicava que os comunistas venceriam a guerra civil na China — como de fato aconteceu. Por isso, era importante para os americanos que a economia do Japão estivesse forte pra conter a influência do movimento comunista na região.

Disquete com laptop moderno
Legenda da foto,Até recentemente, japoneses precisavam enviar disquetes para alguns departamentos de governo

E a estratégia de apostar na industrialização deu certo. Durante os anos 1960, o Japão crescia muito mais do que os EUA — em um ritmo que chegou a ultrapassar 10% ano ano.

Na época, era relativamente fácil para o Japão exportar seus produtos. A moeda local, o iene, valia pouco em relação ao dólar — o que fez com que os produtos japoneses ficassem muito baratos no resto do mundo.

Os EUA, especialmente, acabaram sendo tomados por produtos japoneses, como carros da Toyota e walkmen da Sony.

E o Japão se tornou a segunda maior economia do mundo.

Comércio desequilibrado

Só que esse crescimento forte do Japão tinha um problema: os japoneses vendiam muito mais aos EUA do que compravam — e, com o tempo, isso passou a incomodar.

Em 1985, os dois países fizeram um acordo em que basicamente o Japão concordava em valorizar o iene em relação ao dólar — o que tornou os produtos japoneses mais caros e muito mais difíceis de exportar.

Por que o Japão concordou com esse plano?

“Eu acho que essencialmente é porque… um grande motivo é que o Japão depende dos EUA para a segurança. Então é muito difícil resistir a uma demanda dos EUA com esse tipo de desequilíbrio de poder”, diz Watanabe.

Com a diminuição das exportações, a economia japonesa desacelerou.

Para tentar resolver esse problema, o governo decidiu baixar seus juros. A ideia era incentivar as pessoas e empresas a gastarem, já que pegar dinheiro emprestado estava mais barato.

Esse dinheiro foi usado tanto na bolsa de valores quanto para a compra de imóveis — o que provocou uma disparada nos preços das ações e o do metro quadrado.

Na época, analistas chegaram a dizer que só uma área próxima do Palácio Imperial de Tóquio valia o mesmo que todo o Estado da Califórnia, mais de 400 mil vezes maior em área.

Os bancos passaram a aceitar propriedades caríssimas como garantia para fazer empréstimos.

Mas na prática, não havia justificava para um aumento tão grande nem no valor dos imóveis, nem no valor das ações.

Em outras palavras: se tratava de uma bolha.

E no início dos anos 1990 essa bolsa finalmente estourou. A bolsa entrou em colapso, milhares de negócios quebraram e o valor dos imóveis despencou.

Cidade japonesa nos anos 1980 ou 1990
Legenda da foto,Até os anos 1980, o Japão era um dos países que mais crescia no mundo

Com isso, os bancos, que contavam com o valor desses imóveis como garantia, também ficaram em situação difícil. E os empréstimos pararam — inclusive para o setor privado, que ficou sem dinheiro para investir.

O que ninguém esperava é que esse impacto fosse durar décadas, como explica a professora de Sociologia da London School of Economics and Political Science (LSE), Kristin Surak.

“É uma pergunta difícil de responder, o que causou a estagnação, ou por que o Japão está levando tanto tempo pra se recuperar. E eu acho que mesmo no Japão não há uma resposta clara”, diz.

As décadas perdidas

A partir do início dos anos 1990, o Japão passou cerca de 20 anos praticamente sem inflação.

Na prática, isso significa que era possível comprar alguns produtos em 2010 pagando quase o mesmo preço que em 1992.

E quando as pessoas compram pouco, os preços caem — e as empresas podem ir à falência.

Por um lado, isso permitiu que os japoneses mantivessem seu poder de compra — porque os salários também continuaram praticamente iguais durante todo esse período. Só que eles tinham baixo poder de compra.

Para tentar incentivar o consumo, o país começou a imprimir mais dinheiro e baixou ainda mais a taxa de juros. Essa é uma das principais ferramentas de um governo para estimular a economia.

Mas, no caso do Japão, não deu certo.

“O governo estava tentando fazer a economia se aquecer o tempo todo. [Imprimir mais dinheiro] é uma escolha óbvia para qualquer governo. Mas o Japão não estava reagindo às soluções clássicas da economia que geralmente são oferecidas.”

Mesmo com a taxa de juros próxima de zero, as pessoas continuavam sem gastar — o que alguns analistas atribuem pelo menos em parte a uma questão cultural.

“Os japoneses se preocupam muito com o futuro, com a saúde e aposentadoria. Então, em vez de gastar, se eles ganham algum dinheiro, eles economizam.”

Para deixar a situação ainda mais complexa, o Japão foi também a primeira potência industrial que viu sua população encolher. O país vem registrando cada vez menos nascimentos e pode perder um quinto da sua população atual até 2050.

E é difícil aumentar a produção tendo menos gente para produzir.

Nesse caso, a saída é aumentar a produtividade — ou seja, a capacidade de fazer mais com menos.

Mas o Japão também é o país com a menor produtividade entre as sete maiores economias do mundo.

E parte da explicação talvez pareça contraintuitiva: a taxa de desemprego é muito baixa. Só que isso acontece justamente porque muitas das pessoas que estão empregadas estão em trabalhos pouco produtivos ou desempenhando funções que, em outros países, já foram automatizadas.

“No Japão, por exemplo, você encontra talvez seis pessoas orientando o trânsito em um estacionamento pequeno, e isso não precisa acontecer”, diz Surak.

Tampa de bueiro japonesa, com pinturas
Legenda da foto,Famosas tampas de bueiro do Japão também são símbolos de pouca eficiência econômica do país

O ex-correspondente da BBC em Tóquio, Rupert Wingfield-Hayes, passou muitos anos no Japão. Ele foi embora em 2023, e antes de sair fez a seguinte análise: “Quando pensamos nos elegantes trens-bala do Japão ou na maravilhosa fabricação em linha de montagem da Toyota, podemos facilmente pensar que o Japão é o modelo da eficiência. Mas não é. A burocracia pode ser assustadora e enormes montantes de dinheiro público são gastos em atividades de utilidade duvidosa”.

Um exemplo estaria bem debaixo dos pés de quem passa em ruas do Japão: os bueiros. Ou melhor, as tampas dos bueiros. Elas são lindas — mas são, também, caras.

Em 2023, cada uma podia custar até US$ 900, ou mais de R$ 5 mil.

Existe inclusive uma Sociedade Japonesa das Tampas de Bueiro, que afirma que existem milhares de desenhos de tampas diferentes no país.

Muita gente vê nisso tudo uma indicação dos motivos que levaram o Japão a ter uma das maiores dívidas públicas do mundo, atrás apenas do Sudão.

E essa conta é agravada por uma população envelhecida que não consegue se aposentar devido à pressão sobre as aposentadorias e o sistema de saúde.

Tranquilidade

Mas, apesar de tudo isso, não há nenhum protesto nas ruas.

Pra quem vê de fora, parece inclusive que as coisas na verdade estão indo até que surpreendentemente bem.

A criminalidade é muito baixa e a expectativa de vida é muito alta. A educação é uma das melhores do mundo, e o índice de desemprego não é um problema.

Além disso, como a população está encolhendo, ainda há muita oferta de emprego.

“A situação não é tão ruim quanto em vários outros países, pelo menos é relativamente fácil conseguir um emprego hoje em dia, ainda que não seja bem pago. O salário é bastante baixo, mas dá para sobreviver”, diz Watanabe.

Parte da explicação para essa normalidade aparente pode estar no fato de que, antes de parar de crescer, o Japão era muito rico.

Tão rico que, apesar de ter passado 30 anos estagnado, o Japão caiu apenas do segundo para o quarto lugar entre as maiores economias do mundo.

Pessoa idosa em rua no Japão
Legenda da foto,Envelhecimento da população preocupa líderes japoneses

Mas, em 2022, as coisas começaram a mudar — ainda que de leve. A inflação ultrapassou os 2% depois da pandemia e do início da Guerra da Ucrânia — e se manteve acima desse patamar desde então. E o Banco do Japão elevou a taxa de juros para o patamar mais alto desde 2008.

Mas ainda não se sabe qual vai ser o impacto disso no longo prazo.

“Se você falar com economistas no Japão e com o governo, eles geralmente são bem realistas dizendo algo como: “nós queremos ficar entre as 10 maiores economias do mundo”, uma coisa que você não ouve com frequência de países que até recentemente eram a segunda maior economia do mundo”, diz Surak.

Pelo menos parte desse pessimismo em relação ao futuro se deve ao fato de que os próprios japoneses reconhecem que em muitas áreas o país ainda continua preso ao passado.

No mesmo dia em que declarou guerra contra os disquetes, o então ministro de Transformação Digital prometeu se livrar de um outro inimigo da modernidade: a máquina de fax.

Mas, pelo menos por enquanto, ela continua firme e forte — inclusive nos prédios do próprio governo. BBC NEWS