Sendo 25% em MS, delegadas relatam rotina de lutas por espaço e respeito: ’24 h por dia e 7 dias na semana’

Em 3 de dezembro é celebrado o Dia Nacional do Delegado de Polícia. O g1 conversou com delegadas de Mato Grosso do Sul, que relataram os desafios, sonhos e momentos marcantes durante o dia a dia na profissão.

Por Débora Ricalde e Renata Barros, g1 MS

Em 3 de dezembro é comemorado o Dia Nacional do Delegado de Polícia. A data é uma oportunidade para refletir sobre os desafios e conquistas da categoria. Em Mato Grosso do Sul, dos 314 delegados, 80 são mulheres, segundo dados da Polícia Civil. Ou seja, 25,4% das vagas nas delegacias e departamentos de polícia são ocupadas por elas.

Conforme a Polícia Civil, as delegadas mais experientes ainda em atuação no estado são da turma de 2000. Entre elas, está a titular do Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado (Dracco), Ana Cláudia Medina. Com mais de duas décadas de ofício, Medina comenta que a rotina de trabalho é intensa.

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“Tenho hora para chegar, mas não tenho hora para sair, nós trabalhamos no sistema de sobreaviso, então é dedicação exclusiva, 24h por dia e 7 dias da semana”, explica.

Os problemas não são coadjuvantes. Todos os dias, uma adversidade diferente se apresenta a Medina. “Aqui nós precisamos ter todo o trato disso, com a atuação legal, mas como ser humano, com acolhimento, sabendo que é uma sociedade carente, que nós temos problemas estruturais, familiares, educacionais e que acabam acarretando para as áreas de segurança pública. É desafiador, mas é apaixonante”, garante.

Trajetórias marcadas por desafios

Há mais de duas décadas como delegada, Medina comenta que desde a faculdade se encantou por uma vertente da profissão: “era apaixonada pela investigação policial”. Nascida em São Paulo, Mato Grosso do Sul se tornou casa para a delegada desde a infância. Em terra paulista, Medina voltou para cursar a tão sonhada graduação em direito.

O concurso da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul trouxe Medina de volta ao estado onde cresceu. Logo de início, a delegada enfrentou um grande desafio. “Na época eu já fui escolhida, dentro desse grupo de delegados que tomavam posse, sair da atividade fim, que era atuação em delegacia, para a criação de um departamento novo que era o departamento de inteligência policial”, cita.

Delegada Ana Claudia Medina, titular da Dracco em MS — Foto: g1 MS

No departamento de inteligência policial, Medina permaneceu por mais de uma década. O desafio seguinte foi atuar na Primeira Delegacia de Polícia de Campo Grande. Após dois anos na 1ºDP, a delegada tornou-se titular da Dracco, onde está até hoje.

“A minha base sempre foi Campo Grande, mas pelo departamento de inteligência e também pela Dracco minha atuação se estende a todo o estado. Tive diversas operações que exigiram que fôssemos até nossas divisas e até outros países”, lembra.

Gerações distintas, mesmo desafio

Enquanto Medina carrega anos de experiência na Polícia Civil, Riccelly Donha caminha os primeiros passos. Nomeada em julho de 2022, Donha é uma das delegadas da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Campo Grande. Ela atuava desde a formação em direito na área da advocacia pública e precisou de muita coragem para mudar os rumos da profissão.

“Eu amo a advocacia pública, é uma área que aprendi muito, tenho muita gratidão, mas precisava de algo a mais na minha carreira”, comenta.

Delegada Riccelly Donha, é uma das integrantes da Deam de Campo Grande (MS) — Foto: g1 MS

Paranaense, Donha sempre viveu em Maringá e pretendia permanecer no estado, até que foi aprovada no concurso da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul. Apesar de ser encorajada pelos amigos, ela esbarrou em um preconceito. “Sempre falava que não sabia se era pra mim, porque eu falo muito fino”, relata.

Aos 32 anos, a agora delegada da Deam, disse sim às mudanças e colocou os pertences e sonhos na mala rumo ao estado sul-mato-grossense. “Tive que aprender a viver sozinha, construir novos ciclos de amizade, dentro e fora da polícia, isso também foi um grande desafio”, diz.

O cargo na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher foi escolhido pela delegada graças à boa colocação no concurso.

“Nós lidamos com as mazelas, com os crimes, com as vítimas em situação de vulnerabilidade. Nós que atendemos as vítimas e é muito gratificante. Então, eu falo que a profissão me escolheu em um momento que estou apta a exercer da melhor forma possível”, ressalta Donha.

Na Deam, Donha está cercada de outras delegadas mulheres. Segundo ela, o acolhimento foi peça chave para uma boa adaptação à nova vida. “No início da carreira isso é muito importante, porque eu tenho quem me socorrer quando eu preciso de auxilio, me ensinar como fazer”, cita.

Donha descreve a vaga na Deam como uma oportunidade de crescimento. “É um privilégio muito grande trabalhar com outras mulheres, mulheres empoderadas, mulheres que passaram por anos de carreira e outras experiências que eu não tive e talvez alguns tipos de preconceitos que eu não vou passar. Eu ainda estou engatinhando na Polícia Civil, estou nos meus primeiros meses como delegada, então para mim é um privilégio muito grande”, ressalta.

Baixa representatividade feminina

A delegada da Deam lembra do período em que esteve na academia de polícia. Segundo Donha, cerca de 30% da turma era composta por mulheres. Para ela, a porcentagem, embora pequena, é próspera.

“Para uma carreira policial é um número relevante. É uma honra, é muito prazeroso ver mulheres conseguindo estar numa carreira de liderança, de chefia, em um cargo de delegada que antes, em um passado muito recente, era dominado por homens”, comenta.

Medina também cita a baixa representatividade de mulheres na própria turma de delegados, em 2000. “A minha turma de Delegado de Polícia são de 118 delegados que tomaram posse, sendo apenas 18 mulheres”. A delegada comenta ainda que em algumas ocasiões foi a única mulher em cargo de chefia.

“Era a única mulher que chefiava uma unidade de combate à corrupção e ao crime organizado, às vezes cheguei como única mulher que estava à frente da inteligência policial, então sabemos que é um desafio”, afirma.

De acordo com Medina, o trabalho das mulheres vem aliado à cobrança por resultados, mas para ela, isso não é um problema. “As pessoas também cobram resultados, se a mulher está em determinado local lotada, principalmente se for uma delegada de polícia, do por que ela está ali, como ela atua, a fragilidade, a sensibilidade, como ela trata o dia a dia dela, mas eu vejo isso de maneira muito positiva, vejo que é papel de destaque e mostra a força da atuação policial feminina”, opina.

Donha comenta que o julgamento muitas vezes está presente na rotina profissional. “Muitas vezes nós somos tão julgadas se conseguimos exercer o cargo e ver as mulheres exercendo essas titularidades da delegacia, essa carreira que é dinâmica, com um pouco de perigo, as mulheres conseguindo fazer isso com maestria, eu acho sensacional”.

Ser escolhida

Sobre a decisão da carreira, Medina é certeira: “policial não escolhe, ele é escolhido”. A delegada titular da Dracco destaca que é impossível desassociar o ofício da vida pessoal. “A gente tem a obrigação de ser policial civil 24h por dia, mas é algo que a gente traz na rotina, que acaba passando para os familiares, para que possam entender nossas ausências”, diz.

A delegada comenta que em casa todos já estão acostumados, visto que ela e o esposo são policiais civis. “Então temos uma rotina agitada, exigente, não fica ausente só a mãe, mas o pai também. Mas, nós tratamos com qualidade e não quantidade, então isso é algo muito bem resolvido em casa”, garante.

Apesar dos desafios que se estendem para a vida pessoal, para a delegada da Deam a recompensa vem por meio das mulheres acolhidas. “Algumas vítimas vêm depois e agradecem o atendimento, a tutela que conseguiu do estado, acho que isso é uma das coisas mais prazerosas da atuação, o reconhecimento do bom trabalho”, afirma Donha.

O medo é uma palavra que não compõe o vocabulário daquelas que colocam a própria vida em risco pela profissão.

“Não tenho dia, não tenho hora, não tenho lugar, me dedico, porque é o que eu sei fazer, eu sempre costumo falar que eu não uso esse uniforme atoa, vira uma questão de pele. A gente sai de casa para fazer a diferença, muitas vezes sem saber se vai voltar, mas com a certeza que fomos escolhidos e vamos dar o máximo para cumprir”, ressalta Medina.

A luta continua

O atual cenário da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul é visto como uma conquista pela nova delegada da Deam. “É fruto, é resposta, da luta das mulheres desde a nossa inclusão no mercado de trabalho. Nós viemos trabalhando de pouquinho em pouquinho para que o papel da mulher seja reconhecido na família, no trabalho, nos relacionamentos e ver hoje as mulheres conquistando esse espaço de chefia, de liderança, mostra que estamos no caminho certo, precisamos avançar”, pontua.

A titular da Dracco acredita que a tendência que a presença das mulheres continue crescendo na Polícia Civil. “Nós já temos grandes nomes e grandes mulheres à frente, que são sempre incentivadoras para aquelas que estão interessadas em fazer a diferença. Então ainda temos o número que não é expressivo, mas já temos grandes nomes que marcaram a trajetória e que, com certeza, trarão outras mulheres para a área”.

O medo é uma palavra que não compõe o vocabulário daquelas que colocam a própria vida em risco pela profissão.  — Foto: g1 MS

O medo é uma palavra que não compõe o vocabulário daquelas que colocam a própria vida em risco pela profissão. — Foto: g1 MS

A voz fina, que um dia foi motivo de preocupação e dúvida para Donha, hoje reforça que ela não precisa mudar para chegar onde deseja. “Antes quando uma mulher se dispunha a se ‘rebelar’ contra o sistema para adentrar numa carreira que era dominada por homens, ela tinha muitas vezes que se masculinizar, se apresentar de uma forma mais rigorosa, mais rígida para ganhar respeito e hoje eu já entrei num novo modelo em que eu sou respeitada. Estar hoje nesse momento de respeito é reflexo de uma luta que vem de muitos anos”, afirma.

Com mais de duas décadas dedicadas à carreira na Polícia Civil, Medina tem orgulho da trajetória traçada pela jovem Ana Cláudia. “Eu diria para aquela Ana Claudia de 23 anos atrás para que siga em frente, que o futuro é promissor e que vale a pena. Toda a dedicação valeu a pena e sempre vai valer a pena. Aquela Ana Cláudia lá atrás estaria orgulhosa da delegada Medina de hoje”, garante.