Empresários levantam investimentos à espera de um mercado medicinal de maconha no Brasil

Diferentemente de países em que avança a indústria farmacêutica baseada no canabidiol , um dos princípios ativos da maconha ou cannabis, não há autorização no Brasil para o uso medicinal da erva. Mesmo assim, start-upsbrasileiras começam a se organizar em torno da possibilidade de esse mercado se abrir no país no futuro. Estima-se que, se uma legislação favorável à cannabis medicinal for aprovada no Brasil , o número de pacientes beneficiados poderia chegar a 3,9 milhões em três anos. Isso significa um mercado potencial de R$ 4,7 bilhões por ano, nos cálculos feitos pela empresa de dados NewFrontier em parceria com a start-up brasileira The Green Hub. 

No Brasil, o uso da cannabis é ilegal, tanto medicinalmente quanto para recreação, e a importação de produtos só pode ser feita mediante autorização do governo para famílias com prescrição médica. O uso da maconha para tratar doenças, uma reivindicação antiga de pacientes que poderiam se beneficiar dela, ainda é um tabu. E não só entre a população em geral, mas também entre os médicos, dizem os empreendedores. Ainda assim, eles apostam numa explosão de demanda se a liberação no setor de saúde acontecer.

— Além de mudança na legislação, é preciso educação sobre o tema. Queremos criar uma base de informações em português — diz Marcel Grecco, um dos fundadores da The Green Hub, uma aceleradora de projetos ligados ao uso da cannabis que está planejando uma seleção de start-ups do setor. — O Brasil tem o maior potencial da América Latina para esses negócios.

Fundada em 2015, a The Green Hub reúne seis sócios de diferentes áreas: dois médicos, um advogado, um administrador de empresas, um executivo de marketing e outro de tecnologia. O negócio não visa comercializar os produtos em si, mas divulgar informações e serviços sobre medicamentos e terapias e conectar investidores com bons projetos, inclusive de países vizinhos, como a Colômbia, onde a legislação já está mais adiantada.

Infusões produzidas a partir de maconha são exibidas em conferência sobre produtos medicinais de cannabis em evento nos Estados Unidos / 16-6-2017 Foto: SPENCER PLATT / AFP
Infusões produzidas a partir de maconha são exibidas em conferência sobre produtos medicinais de cannabis em evento nos Estados Unidos / 16-6-2017 Foto: SPENCER PLATT / AFP

A empresa criou uma plataforma educacional para médicos e pacientes com cursos on-line, seminários e workshops sobre o tema. Também desenvolveu um aplicativo em que o paciente em tratamento pode relatar sua evolução. Um software, que também pode ser utilizado por médicos, sugere os melhores tratamentos.

Estigma, o risco do negócio

Para o professor David Kallás, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper, o mercado medicinal de cannabis tem grande potencial no Brasil, mas o crescimento depende ainda de um debate profundo sobre o assunto. Muita gente ainda confunde o uso do canabidiol no tratamento de doenças como epilepsia e esclerose múltipla com o recreacional da maconha. Daí o estigma — e um risco para o negócio.

— É um tema polêmico. Os medicamentos à base de canabidiol têm “zero barato”. É preciso um debate para esclarecer, além de uma regulação clara do governo, com previsão de fiscalização no caso de aprovação do cultivo, como aconteceu em outros países. Para os empreendedores, esse marco regulatório é fundamental — avalia Kallás.

O emprésario brasileiro, José Bacellar, criou, com sócios argentinos e chilenos, a startup VerdMed. A sede fica no Canadá, onde o uso medicinal e recreacional da cannabis já está liberado e a empresa pode pesquisar e terceirizar a produção de medicamentos com base no canabidiol. Mas a empresa está de olho na América Latina. Já fincou sua bandeira em outros países da região, onde esse mercado pode movimentar até US$ 12,7 bilhões em 2028. A VerdMed começou o cultivo de cannabis na Colômbia, de onde sairão por ano mil litros de óleo da planta, matéria-prima dos medicamentos. No Brasil, a empresa comprou um laboratório em São Paulo, que já tem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar os produtos medicinais à base de canabidiol.

— Também já estamos no Chile, Uruguai e Argentina. Os países latino-americanos estão se organizando em torno desse mercado e o Brasil, hoje, se posiciona como apenas como importador — diz Bacellar, que começou sua carreira no ramo de medicamentos farmacêuticos e, no meio empresarial, chegou a presidir a Bombril, de produtos de limpeza.

Ele conta que a VerdMed já captou US$ 12 milhões em investimentos vindos de fundos e investidores que já conhecem esse mercado, como forma de financiar a expansão na América Latina. Este ano, haverá mais uma rodada de captação, de mais US$ 20 milhões e, a expectativa é alcançar até US$ 50 milhões em 2020.

— Teremos um medicamento para problemas de insônia e o mercado da América Latina, que canadenses e americanos já estão de olho, tem 450 milhões de consumidores — observa Bacellar.

Regulação travada

O atraso na regulação em comparação com os países vizinhos faz o Brasil correr o risco de se manter na posição de importador, já que o plantio da cannabis não é permitido aqui. Isso significa que os pacientes continuarão pagando um preço alto pelos medicamentos, observam os advogados Elysangela Rabelo e Marco Torronteguy, sócios na área de ciências da vida e saúde do escritório TozziniFreire. O tratamento de um paciente com epilepsia com remédios à base de canabidiol custa cerca de R$ 5 mil ao mês.

Para os advogados, a regulação tem dificuldade de evoluir porque envolve muitos agentes de governo, como Anvisa, Ministério da Agricultura e Ministério da Justiça.

— Enquanto a regulação, que é em cascata, não mudar, e o país não produzir o princípio ativo dos medicamentos, a importação continuará cara. Perdemos uma oportunidade econômica e de desenvolvimento tecnológico — diz Elysagela.

Primeira start-up brasileira a concluir estudos para produzir um medicamento à base de cannabis no Brasil, a Entourage Phytolab desistiu de esperar. Investe US$ 4 milhões para plantar cannabis no Uruguai, onde se instalou numa espécie de zona franca, perto de Montevidéu, com isenção de impostos.

— Para que o projeto da empresa continue a fazer sentido precisamos da matéria-prima. Não podemos cultivar no Brasil, nem mesmo para pesquisa. Por isso, decidimos plantar no Uruguai. A ideia é fazer o registro do nosso medicamento até 2020 — diz Caio Abreu, um dos fundadores da empresa, que chegou a prever mudanças na regulação brasileira até o ano passado, seguindo o movimento mundial em torno do mercado de cannabis.

De acordo com a Anvisa, o número de pessoas que fizeram pedidos para importar canabidiol saltou de 1.392, em 2017, para 2.371 em 2018. Este ano, já foram feitos 885 pedidos. Desde 2014, a importação mediante pedido é permitida e, em 2015, a Anvisa retirou o canabidiol da lista de substâncias proibidas no Brasil. Dois anos atrás, a Anvisa registrou o primeiro medicamento à base de cannabis no país, o Mevatyl, para tratamento de esclerose múltipla. Em relação ao plantio e pesquisa clínica, a agência informou que tem acompanhado as discussões no Congresso e pretende criar um grupo de trabalho com outros órgãos antes de apresentar uma proposta de regulamentação.

O Globo