A agonia do Paraguai: rio que dá vida ao Pantanal está na situação mais crítica do Brasil

Fundamental para a existência do bioma, ele sofre há mais tempo que os demais com a escassez de chuva e o calor

Por Ana Lucia Azevedo

 — Corumbá (MT)

As costelas estão à mostra. Se exibem às centenas e revelam a miséria do Paraguai, um rio com fome de água. Bancos de areia são como as costelas de um rio. Normalmente ocultos, emergem na estiagem, como marcas de um corpo que definha. O rio expõe suas entranhas de rocha e areia coladas à pele feita de água rasa. Nas imediações da divisa do Mato Grosso do Sul com o Mato Grosso, está quebrado. De tão raso, não dá mais passagem a barcos maiores. O rio agoniza e com ele, o bioma. O Pantanal não existe sem o Rio Paraguai.

Nenhum outro rio do Brasil sozinho é tão fundamental para a existência de um bioma e está em situação tão crítica há tanto tempo, dizem cientistas. O Paraguai tem a pior situação num momento em que todos os grandes rios do Brasil estão à míngua, destaca Adriana Cuartas, especialista em recursos hídricos do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden).

Com 151 mil quilômetros quadrados, o Pantanal é um mosaico, fruto do encontro do Cerrado, da Amazônia e da Mata Atlântica na vasta planície inundada pelo Paraguai e seus afluentes, que formam a maior planície inundável do planeta.

O rio de 2.621 quilômetros seca desde 1981. Mas a situação se agravou a partir do fim de 2019, se intensificou em 2021 e não se recuperou a contento nos anos seguintes, para piorar ainda mais em 2024. Há 24 meses consecutivos o Pantanal perde mais umidade em evaporação do que recebe de chuva.

— O Rio Paraguai entrou no modo seco sem sinal de alívio. As secas nos anos 60 e 70 foram graves, mas agora a situação climática é pior, há mais desmatamento que devasta as nascentes, aumenta a evaporação e causa assoreamento. Também é maior a demanda da população — frisa Cuartas.

O boletim de sexta-feira do Serviço Geológico do Brasil (SGB) alerta que todos os rios da Bacia do Paraguai estão em descida e abaixo da média para o período. A estação de referência de Ladário (MS), com 125 anos, caminha para seu nível mais baixo, registrado em 1964, quando marcou 61 centímetros abaixo da cota mínima.

— Esta pode ser a pior seca do Pantanal — alerta Artur Matos, coordenador do Sistema de Alerta Hidrológico do SGB.

Previsão do Cemaden indica que não deve chover na região do Pantanal e em boa parte do Cerrado antes do fim de setembro. A temperatura segue acima da média.

Não à toa, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse semana passada o que os conhecedores do Pantanal já sabem há muito tempo: se nada for feito, ele pode desaparecer até o fim do século, extinguindo em décadas milhões de anos de trabalho da natureza.

Há um cenário novo que desafia tradições. As trevas da noite nunca foram obstáculo para os pantaneiros, que aprenderam a navegar orientados por sinais, como as curvas do Paraguai pela planície. São chamadas de voltas. Tem a do Gato, do Tuiuiú, da Patrícia, centenas. Porém, a seca desfigurou as curvas e semeou mais bancos de areia.

— Navego há 42 anos, mas o Paraguai está irreconhecível. Navegar à noite ficou traiçoeiro. Mesmo de dia está difícil, tem a fumaça das queimadas e o calor insuportável — afirma o comandante Edvaldo Canavarros de Abreu, de 62 anos, de Corumbá (MS), um dos mais experientes do Pantanal.

Na terça-feira passada, a fumaça e uma pedra exposta pela seca causaram um acidente de barco que matou um turista e deixou outro visitante e o piloto feridos em Porto Índio, a 300 quilômetros da área urbana de Corumbá.

No Mato Grosso do Sul, o trecho entre Novos Dourados e o Amolar é um dos mais críticos, onde barcos maiores não passam sem arriscar a segurança. A água em alguns pontos está com menos de um metro de profundidade, enquanto que o normal ali seriam cinco metros.

Mesmo para os barcos pequenos, como as lanchas, é arriscado porque se deslocam em velocidade e as colisões com bancos de areia e pedras podem ser violentas, como em Porto Índio.

O comandante Abreu nunca se cansou de aprender com o Paraguai, mas agora se preocupa com o que vê e se entristece com o que não enxerga mais.

— Todo dia aprendo um pouco, mas nunca cheguei a pensar que veria uma coisa dessas e já conheci períodos muito secos, cresci no rio. O Paraguai é a estrada do Pantanal. Mas a seca está dividindo o rio. E os animais estão ficando mais raros. Quando digo que era fácil ver antas e cervos em quantidade nas margens, os jovens duvidam porque não vemos mais essa abundância toda. Até capivara está mais difícil — lamenta o comandante.

O Pantanal e seu grande rio dependem do que acontece fora de seus limites. São influenciados pela Amazônia e precisam, sobretudo, do Cerrado do planalto, onde estão as mais de 4.000 nascentes dos rios. O desmatamento que devasta o Cerrado também destrói as nascentes dos rios pantaneiros e lança imensurável volume de areia e barro em seus leitos.

— Nosso maior desafio é proteger as nascentes, e elas estão fora do Pantanal — salienta o coronel Angelo Rabelo, presidente do Instituto do Homem Pantaneiro (IHP).

Desde 2002, o IHP realiza o projeto Cabeceiras do Pantanal, que ao longo desses anos monitora 1.000 nascentes principais do Paraguai e seus afluentes Miranda, Aquidauana e Betione, além de realizar plantios em áreas degradadas.

Esperança pantaneira

O coordenador do projeto, Sérgio Barreto, diz que a seca só vem a piorar a já grave degradação das nascentes e do curso alto dos rios causada pela expansão da pecuária e da agricultura em áreas de Cerrado do planalto.

Bichos sofrem, pessoas também. O rio baixou tanto que marinheiros precisam usar uma escada para amarrar os barcos aos barrancos. O que era porto de ribeirinhos agora é precipício.

A pantaneira Rosângela de Arruda, de 47 anos, conhecida por retratar em bordados onças que aparecem em seu quintal, vive com marido, filhos e netos à beira do Paraguai, a sete horas de rabeta (canoa a motor) de Corumbá. Na frente de sua casa uma placa indica que ali é o Porto 15 de Março. Com a descida do rio, o barranco teve que ser escavado para se chegar à água.

— Tudo ficou mais difícil, nasci aqui, nunca vi nada como agora. Muito quente, seco e com fogo. É triste, mas a gente segue — diz ela, à espera de tempos melhores.

Globo