Site divulga abusos em países onde a homossexualidade é crime

Site divulga abusos em países onde a homossexualidade é crime

Agência Brasil

Muhadh Ishmael, de 17 anos, nasceu com genitálias de ambos os sexos e, apesar dos seios que surgiram na puberdade, se identificava com o gênero masculino. A intersexualidade do adolescente queniano gerou tamanho ódio em seus pais que eles contrataram homens que mutilaram seu órgão masculino e o abandonaram em uma estrada. Ele morreu dias depois, sozinho, em um hospital de Melinde, no Norte do Quênia. Essa trágica história só chegou a ser contada por causa de um jornalista queninano que, com o uso de um pseudônimo, a publicou no site Erasing 76 Crimes ou Apagando 76 Crimes, em tradução livre para o português. Mesmo assinando Joe Odero, ele pagou um preço alto por fazer a denúncia: foi descoberto, teve familiares mortos e hoje precisa se esconder para continuar vivo.

Mantida por um jornalista americano que vive na Califórnia, a página Erasing 76 Crimes conta histórias de violação aos direitos humanos nos países onde leis preveem até mesmo a pena de morte contra homossexuais. Branco, cristão, heterossexual e casado, Colin Stewart se dedica profissionalmente a denunciar crimes que ocorrem a oceanos de distância de sua casa e contra pessoas muito diferentes dele: LGBTIs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais) dos 72 países onde ainda é crime ter relações consensuais com pessoas do mesmo sexo – a maior parte deles de maioria islâmica, na África e no Oriente Médio. Hoje (28), no Dia Internacional do Orgulho LGBT, histórias como a desses jornalistas ilustram a luta pelo respeito à diversidade.

Sua equipe conta com oito pessoas, e as reportagens sobre violações aos direitos humanos da população LGBT são publicadas em inglês e francês. Os colaboradores escrevem os textos de países como Quênia, Nigéria e Jamaica, e, como Joe Odero, parte deles precisa usar pseudônimos para se proteger de ameaças de morte. Mesmo assim, em 2013, Eric Lembembe, de Camarões, foi assassinado após uma série de postagens para o site.

O envolvimento do americano com a causa LGBT começou na época em que buscava arrecadar dinheiro para ativistas africanos viajarem para os Estados Unidos, em 2012, para participar de uma conferência internacional sobre aids. “[Os ativistas iriam] expor que leis anti-LGBTIs tornam impossível derrotar a pandemia de aids, porque LGBTIs estigmatizados são excluídos de receber atendimento e informações sobre saúde. Nesse processo, eu me tornei amigo de ativistas de Uganda, Quênia, Camarões, Zimbabue, Malawi, Jamaica, Nigéria e mais. Essas relações foram a base do blog.

Pena de morte

O objetivo de “apagar” as leis que criminalizam relações homoafetivas ainda está longe de ser conquistado. Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga), enquanto 47 países reconhecem uniões ou casamentos entre pessoas do mesmo sexo, 72 criminalizam esses relacionamentos. Um total de 13 países ainda preveem pena de morte para LGBTs. Irã, Arábia Saudita, Sudão, Iraque, Iêmem, partes da Nigéria e da Somália continuam a aplicar essas penas.

Nesse cenário, Colin Stewart vê influência de religiosos ocidentais em novas leis LGBTfóbicas na África e alerta para novas formas de perseguição, como as recentes leis americanas que permitem discriminação contra pessoas LGBT se a justificativa for convicção religiosa.

Agência Brasil: Em quais desses países você vê mais possibilidades de mudança nas leis anti-LGBTs?

**Colin Stewart: **rever essas mudanças é difícil e impossível de fazer com precisão, mas eu diria que a mudança virá primeiro em países onde já existem leis sendo debatidas atualmente (Guiana, Tunísia e Jamaica, por exemplo), onde há ações judiciais tentando derrubá-las (Jamaica e Malawi), onde tribunais já decidiram contra leis anti-LGBTs nacionais (Líbano) ou onde há relações mais próximas com os Estados Unidos ou a Europa Ocidental (antigas colônias britânicas do Caribe).

Agência Brasil: Qual é a melhor forma de derrubar essas leis em países onde ainda há parlamentares e uma população majoritariamente homofóbicos?

Stewart: Tribunais podem derrubar leis que violam os direitos humanos. Legisladores são menos inclinados a fazer isso, porque se preocupam em perder o apoio de eleitores homofóbicos.

Agência Brasil: Seu site tem escritores que usam pseudônimos. Quais riscos enfrentam nos países de origem?

Stewart: Aqueles que escrevem com pseudônimos no blog têm histórias importantes a contar. Suas sociedades são violentamente homofóbicas, e a maioria precisa de mudança, que talvez possa ficar mais próxima ao se jogar luz sobre os horrores que ocorrem no silêncio homofóbico. Eles correm o risco de serem mortos se suas identidades forem conhecidas. Em Camarões, o jornalista/ativista gay Eric Lembembe escreveu muitas reportagens para o Erasing 76 Crimes antes de ser assassinado em 2013. No Quênia, o jornalista/ativista gay Joe Odero (pseudônimo) foi perseguido e quase morto depois de ter entrevistado um adolescente intersexual que depois morreu pelos ferimentos causados por seus familiares. Joe precisou de um transplante de rim para sobreviver; seu irmão foi morto e sua irmã foi estuprada pelos homens que o perseguem.

Agência Brasil: Você tem alguma história pessoal de perseguição ou de violência nesses países?

Stewart: Pessoalmente, eu nunca fui submetido a perseguição ou violência nesses países. Minha experiência pessoal com a violência de lá, antes de tudo, é meu luto pelo assassinato do jornalista e amigo Eric Lembembe em Camarões. Mais recentemente, eu tenho gastado muito tempo e dinheiro tentando manter Joe Odero e sua família vivos no Quênia. Joe e eu estamos trabalhando em um livro para contar essa história em detalhes.

Agência Brasil: A população trans nesses países sofre com perseguição ainda maior? Há leis específicas contra eles?

Stewart: Em muitos desses 76 países, sequer há diferença entre pessoas trans e pessoas LGB; eles são discriminados da mesma forma. Historicamente, alguns países do Sul da Ásia (Índia, Bangladesh e Malásia, por exemplo), demonstram mais consciência sobre a população trans, mas ainda não os tratam devidamente. Diferentemente das leis anti-trans proibindo o uso de banheiros nos Estados Unidos, não conheço leis específicas que retiram direitos de pessoas trans nesses países, mas é preciso incluir como leis anti-trans as muitas leis cruéis que impedem as pessoas trans de viverem suas vidas plenamente no gênero com que se identificam.

Agência Brasil: Você tem alguma avaliação específica sobre a América Latina e o Brasil?

Stewart: Com algumas exceções, nenhum país da América Latina tem leis específicas contra relações consensuais entre pessoas do mesmo sexo, e, por isso, a região não é parte da cobertura regular do Erasing 76 Crimes. Mas muitas sociedades latino-americanas são homofóbicas, e às vezes violentamente homofóbicas. Eu publiquei uma contagem de pessoas LGBTIs que são mortas em crimes de ódio, mas os crimes acontecem com tanta frequência que não é possível manter a lista atualizada. Infelizmente, LGBTI brasileiros assassinados são grande parte da lista. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos documentou 770 assassinatos e ataques seriamente violentos a LGBTs entre janeiro de 2013 e 31 de março de 2014 na América Latina, incluindo 594 assassinatos por ódio a LGBTI no Brasil.

Agência Brasil: Quais são as maiores ameaças à população LGBT nas Américas e Europa atualmente?

Stewart: De modo geral, pessoas trans negras têm mais chances de serem assassinadas. Como a GLAAD [Aliança de Gays e Lésbicas Contra a Difamação] noticiou ano passado: 2016 ultrapassou 2015 como o ano mais mortal de que se tem notícia contra pessoas trans nos Estados Unidos. Em 2015, 21 mulheres trans foram mortas nos EUA, e quase todas eram negras.

Agência Brasil: Leis como as leis de liberdade religiosa nos Estados Unidos e a lei contra a propaganda LGBT na Rússia são novas ameaças à população LGBT?

Stewart: Sim, são uma nova geração de leis anti-LGBT. Elas estabelecem “tradição” e “religião” como justificativas para que a discriminação LGBT e a violência possam acontecer.